Faz pouco mais de 20 anos que a "Boca Maldita" está banguela. Não, não me refiro à Confraria da Boca Maldita formada por ilustres cavalheiros nascidos nesses úmidos e protestantes pinheirais. Nem aos senhores de idade que praticam a grande arte da maledicência na minúscula Avenida Luiz Xavier. Refiro-me à escultura homônima do artista plástico Elvo Benito Damo e do arquiteto Abrão Assad, erguida em honra do mais original dos territórios curitibanos.
A "Boca" dispensa apresentações. Já a tragédia que vitimou a escultura tende a cair no esquecimento. Em meados da década de 1980, Elvo e Abrão receberam a encomenda de um monumento à Boca Maldita. O dinheiro era de chorar. O tempo para entregar a obra, uma insanidade. "15 dias", lembra Elvo. A dupla dinâmica não fugiu à luta, cada um com seus motivos. Abrão foi praticamente o idealizador da Rua XV moderna. São invenção dele as cúpulas de acrílico roxo, viradas em moda no país todo. Por direito, tinha de participar do projeto "Boca". Quanto a Elvo, figura entre os escultores que mais ocuparam os espaços públicos paranaenses. O homem é um cisco. Assinar um trabalho no Calçadão era só o que lhe faltava.
Missão cumprida, com placa, discurso e coisa e tal. Mas é bom que se diga o público não morreu de amores pela peça, mais estranha que o papa do Bosque João Paulo II. Foi como ouvir música dodecafônica pela primeira vez. Reza a lenda que até o Jaime Lerner estranhou, mas teria sonegado sua opinião ao saber o nome dos autores. Abrão fora seu parceiro na "primavera urbanística" dos anos 1970. E o Elvo é tão querido na cidade que falar mal dele equivale a xingar a santa mãezinha. Cala-te boca maldita.
"Boca Maldita", a obra, é formada por duas pedras de granito uma delas com quase 4 metros de altura, em formato de...? Adivinhão. Na parte interna, trazia 47 pontas de bronze, com pátina verde, formando um dentrifício vociferante. Trazia. Mal foi inaugurada, a obra arrumou inimigos às pencas, pedindo a viva voz sua demolição irrestrita e imediata. Prefeririam, suponho, a Estátua da Liberdade da Havan ou o finado David do Café Maria.
No privado, falava-se da feiúra repulsiva da peça ou das escaramuças com Anfrísio Siqueira, criador da Confraria da Boca. Em público, alegava-se que alguma criancinha indefesa escalaria a obra, escorregaria e teria seus intestinos perfurados pelos dentes de bronze, tingindo de sangue o petit-pavé da Rua XV. Dava arrepios só de imaginar. Elvo propôs erguer o pedestal e pronto, mas ninguém lhe deu ouvidos. Sugeriu, então, fazer um paisagismo em redor, dificultando a suposta trepada de algum piá em fuga das atividades do Bondinho. Nada. Os detratores queriam desbeiçar a "Boca". Conseguiram.
Em 1995, a Justiça determinou que as pontas de bronze fossem arrancadas, "sem anestesia", cena que lembra o martírio de Fantine, em Os Miseráveis. Elvo, resignado, ainda guarda os dentes com ele, no ateliê do Parque São Lourenço, onde trabalha. Se um dia o implante for autorizado, fará a cirurgia de pronto, lançando mão dos avanços da ortodontia. No começo da contenda, reconhece, sofreu como um protético desempregado. Depois deixou para lá. OK, não esconde a curiosidade de saber o que os guias de turismo dizem quando apresentam a "Boca" aos forasteiros. Devem rezar para ninguém perguntar o que são aquelas duas pedras inacabadas. Vieram de Stonehenge? Eram os deuses astronautas? Tenham dó.
Se me permitem, a escultura original era um barato. Fim de tarde, quando o sol faz do Calçadão a rua de todos nós, os dentes de bronze reluziam, mexendo com nossos brios de operários em fim de expediente. Misto de citação a Picasso e aos quadrinhos duas referências confessas de Elvo Benito Damo , "Boca Maldita" lembrava o que tão bem definiu Susan Sontag em muitos de seus ensaios: a arte serve para dilatar a realidade, e para nos fazer resistir aos saqueadores da mente. Com os dentes a peça era "boca dura". Sem elas, "boca mole".
Sugiro aos senhores manifestantes dos passes livres que peçam nos alto-falantes que a escultura do Elvo e do Abrão ganhe de novo cara de quem morde. E de quem grita. Berremos.
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