João Carlos Siqueira Rodrigues sempre foi doido por automóveis. Pelas suas contas, dos 21 aos 37 anos, a idade em que está, teve 17 "joinhas". A primeira foi uma Belina bege, "trocada num Fusca". Depois uma Willis 62, uma Maverick, um Chevette Hatch dos seus preferidos. Aí veio o Escort, a Quantum, a Caravan, outra Caravan, outro Escort, outro Fusca. Por fim, um Fiat Uno, um Royales, outro Chevette, de novo um Escort. Verona. Opala. "Eu beijava o carro, depois a namorada" brinca.
A conta termina em 2007, ano em que João cruzou com o destino lá pelas bandas da Avenida João Bettega. Tudo começou com uma dormência nas pernas e nas mãos. "Dor de coluna", deduziu. Assim lhe parecia, até que veio a primeira queda, quando corria para pegar o ônibus, na Vila Nossa Senhora da Luz. "Peraí!" Arrastou-se até em casa, chorou feito criança, tirou o Opala da garagem e dirigiu, grogue e dormente, rumo ao Centro, para pedir demissão. "Não seria justo com meu patrão."
Os médicos diagnosticaram polirradiculoneuropatia, uma doença degenerativa crônica, e deram contas ao João sobre o que vinha pela frente. Foi rápido: em um ano não mexia um músculo sequer. Nem a cabeça, virada por caridade de outrem. Respira com aparelhos, sem os quais, blau. Mas por graça não perdeu a voz. Com ela, "dirigiu" um livro Caçador de lembranças, que acaba de ser publicado. Aos fatos.
Acamado, imóvel e convertido em hóspede vitalício do Hospital Evangélico, João não viu escapatória senão falar e falar, no que sempre foi tão bom quanto em dirigir. O falastrão do quarto 646 virou xodó das enfermeiras e não tardou a ouvir que devia pôr no papel as aventuras que papagaiava. Escrever, ora, não podia mais, mas ditar, que tal? Foi o que fez.
A história de João não tem segredos. Piá do Pinheirinho, estudou no Colégio Estadual Loyola, abandonado na quinta série, depois de três reprovações. Antes de partir, teve seus minutos de fama. Foi numa aula de Português, ao redigir um conto de horror transformado em best seller instantâneo. Circulou por toda a sala, qual um bilhetinho daqueles.
Entendeu que levava jeito para as letras. Mas era tarde. Conseguira um serviço, o que lhe daria dinheiro para comprar um carro. Como já lhes disse, mais do que um. Vez ou outra, sofria uma recaída e cometia um poema, punha um bilhete meloso na porta da geladeira, um desabafo no diário. E só. Tinha mais o que fazer consertando ar-condicionado ou fazendo manobras em estacionamento. Não fosse a dormência, estaria lá.
Foi desse capítulo da vida parado no meio que saltou para o atual. Às vezes se entristece e não diz palavra. Passa. Em minutos está em forma, lendo sites de automóveis e de gastronomia ou aprendendo piadinhas para contar à turma do hospital. Quando não, convoca sua cuidadora e ghost writher Sandra de Moraes."Vamos escrever?"
Não tomem João por um mártir. É gente como a gente. Seu prato preferido "é o cheio". Bom garfo, daria um reino por uma tina de doce de abóbora. Música, as do Frejat. Livros os de bolso, na linha Texas, nunca lidos até o fim. Como é sempre um menino, mantém um matchbox em cima da tevê. Impala preto o 18.º da lista. Quando bota os olhos no possante, quem dera.
Dia desses, sonhou que pegava a estrada, a mão para fora da janela, uau. Acordado, sonha que vão colocá-lo num carro e... Deu certo com o Al Pacino, em Perfume de Mulher. Se acontecer, um obséquio: pede que lhe tragam de casa o cachorro Billy, para um abana rabo seguido de lambidas. Depois, irão os dois sem rumo, à boleia. Sabe cumé, João deu de sentir falta dessas coisas tão banais.