| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

O Natal de 2011 prometia ser gloriosamente difícil na Casa dos Pobres São João Batista, Rebouças – antiga zona industrial de Curitiba. Os problemas da humanidade inventaram de fazer fila nos paralelepípedos da Rua Piquiri, esquina com a Rua Brasílio Itiberê. Não bastasse, havia os telefonemas – um verdadeiro Juízo Final – implorando por leitos, refeições, remédios e roupas, tudo em escala industrial. Os 3 mil metros quadrados do albergue virariam poeira cósmica se todos os necessitados fossem atendidos. Mesmo assim, o rapaz da portaria insistiu para que a administradora Liana Rauber o acudisse. Havia à sua espera uma mulher na recepção – Iara Silva Matos, 59 anos, a dona dessa história.

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A catarinense Liana vinha de uma carreira na área de segurança privada, até decidir fazer de 2011 o seu ano do pensamento mágico. Deu baixa na carteira e se alistou como voluntária na Casa dos Pobres. Foi como um mergulho no lago gelado. Em pouco tempo, seu nome chegava a causar eco nos corredores, tantos pedidos urgentes para que desse um jeito no mundo. Naquele dia, na portaria, o nó atendia pelo nome de Iara, da categoria recém-chegada às ruas. Mas não havia vaga nem para Nosso Senhor. Tal como na belíssima peça Novas diretrizes em tempo de paz, de Bosco Brasil, a forasteira teve poucos minutos para convencer sobre o drama que enfrentava.

Iara é protagonista de uma tragédia bem brasileira – fazem parte do script o abandono, a implosão dos vínculos familiares, a negligência. Gaúcha de Santa Maria, não conheceu o pai, perdeu a mãe ainda menina, casou-se cedo e teve seis filhos. Profissão: doméstica. Gastou a mocidade com tarefas tais como tirar cera velha do chão e lavar lençóis no muque. De modo que a notícia de um emprego no Centro de Curitiba lhe pareceu uma recompensa divina pelos serviços prestados. A nova patroa era idosa e sozinha. Fariam companhia uma à outra – retribuiria a gentileza com bolinhos de chuva e noites em claro, se preciso fosse.

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A sem-teto Iara entendeu todos os nãos, mas algo dizia que tinha encontrado sua casa

Mas não. O que Iara passou no novo emprego bem merecia figurar no site “Eu empregada doméstica”, que abriga depoimentos de maus tratos em “casas de família”. No trabalho de jornalista, ouvi histórias de causar vertigens. São filmes de terror, apinhados de ridículas avarezas em torno de um rolo de papel higiênico. Algumas cenas se repetem, como se houvesse uma cartilha de sevícias a ser seguida. Tem a da empregada obrigada a almoçar depois dos outros, sentada no degrau da cozinha. A do patrão que se “alivia” com a criada. A do último pedaço de carne lançado aos cachorros, privando a “moça que trabalha lá em casa” de comê-lo. O belo filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, é um conto de fadas perto desses relatos em primeira pessoa.

Iara apanhou de pau, passou fome, sofreu humilhações – como ser acusada de roubo de um bujão de gás, outro clássico da relação patroa-empregada. “Sentia vontade de me atirar pela janela”, lembra. O desfecho veio quando começou a mancar, depois de um AVC. Não servia mais. Foi posta porta afora. Que procurasse o caminhão de onde caiu. “Quando me vi sozinha, em cima de um pedaço de papelão, embaixo da marquise, achei que minha vida tinha chegado ao fim”, conta.

Uma gari falou de Iara para uma assistente social. Uma Kombi da prefeitura a conduziu à Casa dos Pobres São João Batista. Por filosofia, o local abrigava mãe com filhos. Ademais, o estatuto da instituição é atender doentes de câncer, renais e transplantados de baixo poder aquisitivo. Sabe aquela pessoa modesta que vem do Norte se tratar nas Clínicas e no Erasto? Pois ela dorme e come no São João Batista. A sem-teto Iara entendeu todos os nãos, mas algo dizia que tinha encontrado sua casa. Foi quando fez da palavra sua arma – contou tudo. Liana chorou a dor do outro. Iara ficou. Lá se vão cinco anos de afetos.

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A origem da Casa dos Pobres São João Batista é uma espécie de fábula de Andersen. A gente não cansa de escutar. Conta-se que, no início dos anos 1950, o bilheteiro Januário Alves de Souza se impressionava com a quantidade de viajantes que desciam na Estação Ferroviária – hoje Shopping Estação – em busca de tratamento médico. Queria saber onde dormia aquele povo. Assim que obteve a resposta, saiu da toca dos alienados.

Januário começou a pedir uns troquinhos aos passageiros. Garantia que cada tostão seria usado para erguer um abrigo de migrantes. Os caraminguás tilintavam em ritmo de esmola. Nas horas vagas, o bilheteiro batia perna pelo Rebouças, pedindo doações aos conhecidos. Não é de duvidar que muitos o tomassem por um doido varrido. Até que, com um terreno doado – na Piquiri com a então Rua Cinco de Maio –, ergueu a primeira sede, de madeira, e fez dela o teto dos necessitados.

À época, a generosidade de Januário cativou uma pá de gente – entre eles, o renomado engenheiro Venevérito da Cunha, um dos que emprestaram sua ciência para erguer o prédio atual. A Casa dos Pobres São João Batista obedece aos cânones da arquitetura conventual. Os cômodos são altos, pelados, espartanos. Os poucos espaços de descanso são rígidos – lembrando que se trata de uma casa de passagem. Ninguém vai morar ali para sempre – nem mesmo Iara da Silva Matos.

A hóspede tem feito sua parte: além de arrumar roupas e sapatos para o bazar que sustenta a instituição e forrar caixinhas de papelão, ela joga na loteria. Quando sabe de um acumulado, as dores que a castigam até melhoram. Com o dinheiro – assim que a sorte lhe sorrir –, vai comprar um apartamento pequeno, ali em roda, para poder atuar como voluntária no lugar que a salvou de morrer no sereno. Talvez troque de bengala, sua companheira desde os tempos de cárcere numa casa de família. O grosso, vai doar à instituição, para que saia do sufoco – agora agravado pela crise econômica.

A Casa dos Pobres tem capacidade para atender 142 viajantes, mais 100 crianças na creche e 45 adolescentes do Projeto Crescer – uma de suas obras, voltada para a comunidade da Vila Torres. Por dia, são 400 refeições. O prato de comida é sagrado – ainda que a frase que mais se ouça ali é “Liana, só tem carne até amanhã, viu?” A obra custa R$ 42 mil por mês, mas só tem, garantidos, uns R$ 18 mil, galgados com as vendas do bazar, mantido com doações de tudo que o ser humano seja capaz de fabricar e de se desfazer.

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Liana faz uma via-sacra mensal de visitas a uma média de oito empresários. É bem recebida, mas as negativas se tornaram mais frequentes desde que a economia entrou em falência. “Quando colaboram, não posso bater na mesma porta no mês seguinte. Mas temos 16 funcionários para pagar.” Na hora do “e agora?”, só lhe resta lembrar o que diz o engenheiro e professor universitário Rafael Pussoli, atuante na São João Batista desde os 19 anos e presidente voluntário há mais de duas décadas: “Está nas mãos de Deus”. Assim tem sido.

Iara Matos foi parar nas ruas depois de sofrer nas mãos de uma patroa inescrupulosa.
Uma gari falou de Iara para uma assistente social, e ela foi levada à Casa dos Pobres São João Batista.
A Casa dos Pobres se dedica a doentes de câncer e outros doentes pobres. Não era o caso de Iara.
Mas sua história comoveu os responsáveis pela Casa dos Pobres. Ela ficou.
Agora, Iara ajuda a organizar os bazares que levantam dinheiro para a Casa dos Pobres – mas cobrir todas as despesas do local está cada vez mais difícil.
Entre as coisas que animam a ex-sem-teto Iara está a loteria. Os planos para quando vier a sorte grande já estão traçados.
Iara já sabe: quando ganhar, comprará um apartamento ali por perto, para ser voluntária. O resto irá para a própria Casa dos Pobres.
A Casa dos Pobres, onde vive Iara, precisa de R$ 42 mil por mês, mas as vendas do bazar só garantem R$ 18 mil mensais.
A crise tem feito minguar as doações de empresas à Casa dos Pobres, onde mora Iara. Mas a Providência não desampara os responsáveis pela obra.