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José Carlos Fernandes

A última compra de tecidos na Casa Hilú

 | Foto: Henry Milleo – Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Henry Milleo – Arte: Felipe Lima)

Não é preciso mapa para circular na Rua Riachuelo, Centro Velho de Curitiba. Qualquer ponto ali fica "antes ou depois da Casa Hilú". Experimente. Ninguém se perde. Ou pelo menos não se perdia. A Casa Hilú vai fechar no final de junho, depois de 86 anos de serviços prestados, notícia que tem provocado um surto de nostalgia seguida de ais.

Não é para menos. Poucos comércios como esse merecem as honras do título de "patrimônio". A Hilú já estava aberta quando Getúlio Vargas chegou ao poder, no dia em que o dirigível passou por nossas cabeças, na noite em que trememos de medo da Guerra do Pente, na tensa manhã da abertura do Calçadão da XV, no comício das Diretas Já – para dizer o mínimo.

Gurias compraram ali o corte de tecido para a festa de debutantes. Mães levaram lotes inteiros de véu de mosqueteiro, especialidade da loja, pondo as crias a salvo dos terríveis insetos. Da loja saía matéria-prima para cama, mesa e banho. Não importam quantas nem quais – qualquer recordação relacionada à "Hilú" toca a pele, alcança o cérebro e tira do sério os sentidos. Aquela infinidade de estantes, apinhadas de peças de panos colorido, pediam o toque das mãos e, por tabela, a luxúria da imaginação. Um vício. Como seria vestir aquela peça de casimira?

[Para quem, por azar, perdeu o capítulo da "Maravilhosa História do Mundo" em que as pessoas iam à costureira ou alfaiate, tiravam as medidas e coisa e tal numa saleta cheia de moldes, recomendo o filme Bossa Nova, de Bruno Barreto. Atente à cena em que o alfaiate Juan – Alberto de Mendoza – corta um terno para seu filho Pedro Paulo – Antônio Fagundes. Trata-se de um elogio ao que está "escrito" na tessitura dos panos.]

A Casa Hilú surgiu em 1928, por obra do mascate sírio Miguel Hilú. Diz-se que ele era como uma dessas plantas exóticas que só se criam nos desertos. Ex-combatente das incontáveis guerras do Oriente Médio, não chegou a Curitiba sem cicatrizes. Mas tinha pendores para pensares que faziam dele um forasteiro universal. Teria sido sábio inclusive na escolha da mulher com quem se casaria – Ottilia, italianinha de Palmeira, nos Campos Gerais, uma das vendedoras da loja de tecidos.

Tiveram três filhos – Miguel Júnior, Leila e Samira. Quando Miguel pai morreu, Ottilia fez o que tinha de fazer: assumiu a Casa Hilú, mesmo sem saber direito como preencher um livro caixa ou o sentido da palavra duplicata. Noves fora, tinha tino para os panos. Arriscou. Foi em 1970. A "Hilú" virou a obra de Ottilia. Não só se saiu bem nos negócios como conseguiu erguer uma sede própria – do outro lado da rua, na mesma Riachuelo. Contra todos e contra Collor – que lhe confiscou a poupança – fez uma espécie de pavilhão de 400 metros quadrados, com mezanino, iluminação natural vinda do teto, forrado de peças de pano por todos os lados. Quem entende de tecidos sabe: entrar na Casa Hilú equivalia a brincar no parque de diversões.

Ottilia atendeu na Casa Hilú até outubro de 2012, quando morreu, aos 94 anos, depois de cumprir o expediente da sexta-feira. Diz-se que deixou os negócios tão em dia que, fossem todos como ela, guarda-livros morreriam à míngua. A freguesia, contudo, estranhou. "Onde está dona Ottilia?", deram de perguntar, debruçados nos sóbrios balcões de imbuia do estabelecimento. E dá-lhe contarem algum episódio ligando a negociante, sedas, organdis e as biografias de uma genealogia inteira, tantas famílias ela trajou.

Os filhos logo entenderam que a Casa Hilú fechara seu ciclo. Depois da pausa para mais esse luto, vestiram as modelos da vitrine de verde e amarelo e em clima de Copa do Mundo iniciaram a "queima" de tecidos. Tem sido assim. A cada expediente, a loja fica mais vazia. Vão-se os feltros, os crepes, os veludos, os cetins... Feitos os descontos, quitadas as contas, sacolinha em punho, a freguesia se despede de Leila Hilú, 73 anos, em nome de pais e de mães que por ali passaram. É sempre um aperto, a última compra na Casa Hilú, Rua Riachuelo, 244.

***

Dedico esta coluna a minha avó, a bordadeira Maria Marta Ferreira, morta em 15 de maio, aos 93 anos. Entendia de tecidos. Adorava fazer compras na Casa Hilú.

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