Há pouco mais de duas décadas, me dedico a uma bisbilhotice: observo a carreira do artista plástico Newton Goto, 43 anos. Faço o serviço sem alarido, sem precisão. Aconteceu. Fomos contemporâneos na Escola de Belas Artes. Ele vingou no ofício eu, necas. Essa história me lembra um dos livros que amo A majestade do Xingu, de Moacyr Scliar, leitura que aqui deixo como sugestão e enigma.
Não guardo rancor do insucesso na "Belas". Antes, acho graça. Lembro do que me disse um mui amigo: "Você gostava da arte, mas a arte não gostava de você", risos. Já Goto, ah, o Goto estava escrito nas estrelas. Colegas e professores logo sacaram. Ele nem tinha se diplomado quando a crítica Adalice Araújo o apontou como uma promessa dos anos 1990 e a Adalice nunca errava. Tudo parecia concorrer para que se tornasse o maioral, a fina estampa dos catálogos.
Mas o circuito dos vernissages não lhe caía bem. Como que torturado por Band-aid no calcanhar, saiu por aí, descalço mesmo. Tenho meu palpite sobre o episódio que representou seu début na cidade essa sim a galeria de seu apreço. Estava rumo ao pico da carreira quando montou uma barraquinha com o pessoal do Movimento Sem Terra, o MST, na histórica ocupação do Centro Cívico, em 1999. Ergueu ali um espaço expositivo com dois bambus, uma lona preta, um varal na frente. Descobriu a ironia. Nunca mais foi o mesmo.
Nos anos seguintes, fez o diabo: instalou plotagens na Travessa da Lapa para deleite dos passageiros do biarticulado; integrou grupos de arte urbana do bairro Santa Teresa, no Rio de Janeiro; ficou pelado em protesto; fez fotografia no Litoral, com a gurizadinha caiçara; registrou a relação das pessoas com a tevê. Em companhia de outros libertários, andou pelos terminais de ônibus, pedindo a populares que desenhassem o mapa dos bairros empoeirados em que viviam. Depois se fazia trecheiro, indo às lonjuras cartografadas. Newton pedalava ao vento, sorte dele. E nossa, que assistindo a seus voos ficávamos imaginando como a vida poderia ser se tivéssemos armado nossa lona noutra freguesia. Pois é...
Dias atrás, soube que o Goto agora anda metido na Vila das Torres fazendo arte. Perguntei se, quando ele passa, o povo diz "olha, lá vai o artista". Não soube responder: "Acho que me chamam de Newton mesmo". Como a vila é muito cortejada por urbanistas, sociólogos e viajantes, imagino que o estejam tomando por algum intercambista norueguês, às voltas com o exotismo da pobreza. Nosso personagem tem pinta de estrangeiro. E é um viajante de fato.
No final do ano passado, mostrou a que veio. Numa parceria com o curso de Arquitetura da PUCPR e com o Colégio Estadual Manoel Ribas montou uma oficina para alunos das duas instituições. Para surpresa, os adolescentes da Vila das Torres lotaram o curso cujo principal objetivo era... explorar a Vila das Torres.
Não saíram chupando o dedo. Em quatro expedições, Goto os reapresentou ao lugar onde nasceram. Inserir-se em circuitos ideológicos, como diria seu guru Cildo Meireles, é uma das habilidades desse criador. A trupe seguiu pela "Rua do Meio", mapeou as divisas com as avenidas padrão Fifa, ali em riba; fez trilhas pela mata, prestou tributo ao que sobrou dos rios Água Verde e Prado Velho; palmilhou o Rio Belém que por ali passa com cor, cheiro e sabor i-ni-gua-lá-vel. Das batidas de perna surgiram nove cartazes, no momento expostos na porta do museu de perifa criado pelo comerciante José Francisco Sanches, o Baleia.
Sugiro levar a mostra para o MON. Nas imagens, a garotada ilustra fotos do bairro perguntando onde anda a calçada, a lombada, o gabião que segura as barrancas do Belém. Mas não os tomem por protestantes prestes a atirar vasos sanitários na porta da prefeitura. Paz e amor, bicho. Não há nada de panfletário nesses trabalhos. Antes, são declarações de afeto a um pedacinho de terra onde bem podiam cantar os sabiás.
Prova do apreço é que num dos cartazes os oficineiros aparecem em pose de astros pop, à beira do rio morto, debaixo do emblema "Rock in Rio Belém". Humor é preciso. Aprenderam com Goto, um cara que sabe pôr tudo a perder, por isso ganha. A propósito, um dos cartazes é de autoria única e exclusiva dele. Na imagem, cataloga para a ciência a chamada "flor da vila", enxerto de uma "coroa de Cristo" com flor de maracujá. Talvez a natureza não chegasse a tamanha proeza. Para compensar essa falha, dizem, é que inventaram os artistas.
No segundo semestre do ano passado, como parte do evento Sincronicidades, promovido pelo Departamento de Arquitetura da PUCPR, o artista plástico Newton Goto desenvolveu a oficina "Incursões e Inserções Urbanas". Foram feito ao todo oito caminhadas na vila, em sua maioria com adolescentes moradores da comunidade, estudantes do Colégio Estadual Manoel Ribas
A Vila das Torres em cartaz
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