Foi puro acaso. Faltou carro para a reportagem e me vi, fim de tarde, a bordo de um táxi conduzido por Eloir José Golemba, 27 anos, um chofer em tranças com a literatura. Isso mesmo. O moço branco-Omo, camisa vermelha, quilinhos a mais e sorriso de plantão era escritor em cueiros. Por aqueles dias, andava a três palmos do chão. Dei sorte.
Mal o reluzente carango laranja tinha cruzado o Centro, o condutor em vez de maldizer o trânsito disparou ter acabado de entregar à gráfica uma coletânea de histórias presenciadas no pouco tempo em que trabalhava na praça. A revelação deu "cosquinha", claro. É dá-lhe escarafunchar aquele inesperado Travis Bickle, personagem vivido por Robert De Niro em Taxi Driver. Mais adiante, com a conversa já em terceira, Eloir aproveitou para esmiuçar seu encontro inesperado com as letras. À sua frente, tinha um cenário perfeito. Havia homens e máquinas lidando com a infinda Linha Verde. Pôs-se a 20 por hora. E saiu com essa. "A culpa foi toda da Bruna Surfistinha..."
Recém-chegado da minúscula Rio Azul, cidade de 13 mil habitantes "perto de Irati", o jovem Golemba ficou encasquetado com a onipresença da garota nos programas de tevê. Contabilizou quatro vezes numa semana, um desplante. "Pensei assim: essa menina fez um livro das festas dela. Pois as minhas são bem melhores."
Tinha motivos para achar que podia dar um caldo no desinibido best-seller O Doce Veneno do Escorpião. Desde que estreara na praça, era uma novela atrás da outra. Logo no primeiro dia de boleia, foi batizado pela falta combustível um sururu danado. Viu o acontecido como um sinal. Passou a prestar mais atenção no painel. E também no que os passageiros lhe contavam. Só lhe faltava passar para o papel suas aventuras de taxímetro um caderno de brochura sempre a bordo seria um bom começo.
Foi assim que chegou aos 40 episódios que deram origem ao livro Meu táxi não fala... Ah, se falasse!, bancado por ele mesmo ao custo suado de R$ 12 mil. Cerca de 15 narrativas são ardidas como pimenta. É o caso da mulher que como num filme americano diz "siga aquele carro" e flagra o marido às voltas com uma travesti. De quebra, com a estima beijando a lona, pergunta ao condutor o que acha dela, "para ser trocada, assim".
Saia-justíssima igual, só com o Oswaldir do seriado "Faça sua história". Não faltam, idem, cantadas masculinas e swingers em busca de parceria familiar. Com jeito de bom moço, Eloir José atrai raios. Mas o que impera na coletânea são cenas dignas da Sessão da Tarde. Numa das passagens, trata da condução ao HC de uma garota devassada pela leucemia. Triste de dar dó? Pois espere até ler sobre a mãe-menininha que abandonou a filha recém-nascida numa caçamba e pede ajuda ao taxista para reencontrá-la. É com folga o mais belo texto do livro.
Dias atrás, revi o nobre. Do lado do banco exibia um novo caderno de brochura, "para o próximo volume." Uma das crônicas já esboçadas é um verdadeiro clássico do gênero "vou de táxi". Ganha um sorvete quem adivinhar trata da Loira Fantasma. Como se sabe, nossa Pluft Polaquinha adora uma bandeirada nas altas horas. E não são poucos os colegas de praça que juram já ter gelado até os ossos ao transportá-la para algum destino incerto entre a Avenida João Bettega e a Rodovia dos Minérios. Ao saber dos pendores de escriba do colega, a turma da rádio táxi tem feito questão de lhe confidenciar o dia melhor, a noite em que transportou a mais ilustre das oxigenadas.
"Mas não acredito em assombração", cicia o loiro de Rio Azul. Além de quê, "espertas do além", como se sabe, nunca pagam a corrida. Melhor são os vivos. Entre uma viagem e outra, Eloir encontra quem desafie as convenções sem pôr o cinto , quem avance o sinal, quem solte os demônios, quem encoste no ombro e chore. Já lhe perguntaram quanto custava o conselho. "É irmão, isso aqui dá livro...", vaticinou ao deixar a reportagem lá onde judas-perdeu-as-botas, bem onde assombração adora pedir para descer. Saudações. Marcha-à-ré, primeira, e lá se vai o rapaz que descobriu a dor e a delícia da vida dos outros.
José Carlos Fernandes é jornalista.
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