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José Carlos Fernandes

“Minha pedra é ametista, minha cor, o amarelo...”

 | Felipe Lima
(Foto: Felipe Lima)

Falar de novela é garimpar o silêncio. É levar um carão, ganhar um sabão. Faça o teste. Há quem solte um pigarro, cujo ruído poder ser traduzido por "vá procurar sua turma". Há quem dê uma mexidinha infame nas cadeiras, transferindo para os quadris o que gostaria de fazer com a cabeça.

Essas repulsas fazem lembrar o clássico livro A leitura social da novela das oito, no qual a pesquisadora Ondina Leal registrou a vergonha da classe média em admitir seu gosto pelo folhetim – esse gênero tão brasileiro quanto a crônica. Para essa parcela da população, romances na tevê se resumem a passatempo de domésticas.

O país mudou muito, é claro. Veja-se o empenho cívico em mandar o Rafinha Bastos para o inferno... por causa de uma piada ruim. Temo pelo Diogo Portugal. O humor anda nas bocas, mas novelas continuam sendo um hábito solitário, um pecado venial que, dizem, faz nascer pelos nas mãos. Suspeito que muitas estatísticas sobre o assunto durmam nos confessionários, onde os noveleiros são redimidos mediante carreiras de pais-nossos.

Sugiro aplicar o outing – aquele remédio amargo usado para tirar a turma do armário. Vamos denunciar os fãs de Aguinaldo Silva que usam pretinho básico. A medida ajudaria a admitir a contribuição do folhetim ao progresso da nação. Imagino uma campanha nos outdoors, com a imagem do governador, ou sei lá, debaixo de um imenso carimbo: "Novela. Ele assiste".

A quem interessar possa, a USP tem um núcleo de pesquisa em telenovela. De lá saiu a informação de que graças aos dramas das 6, 7, 8 muitos tiveram acesso a debates que não lhe chegariam pela escola ou pelas igrejas. A lista vai de variantes da sexualidade a distúrbios de personalidade. Sem falar nas experimentações estéticas. Lembra de Bebê a bordo ao som de "Carmina Burana"?

Ao me dar conta disso, foi um tal de lembrar tratados dramatúrgicos que vi deitado no sofá lá de casa. Exemplos: na primeira versão de Pecado Capital, que acompanhei às espiadelas, Salviano (Lima Duarte) faz cara de gestor e pede a Lucinha (Betty Faria) "que dê um jeito nisso". Boiei: ele falava de aborto. E nunca vou esquecer de Catucha (Débora Duarte) agarrada ao pé de uma cadeira quando o Tarcisão a deixa, em Coração Alado. Se escuto "Atrás da porta", com Elis, lembro daquela cena vista piá de tudo, traçando, inocente, um bife com cebolas.

Como já deixei claro que meu interesse é antropológico, podemos tratar de O Astro. Acaba hoje. Toquem a versão do João Bosco. Vi apenas alguns capítulos [juro], mas quem me dera ter feito até álbum de figurinhas. Digo por quê: duvidei e fiz pouco de que alguém pudesse substituir Teresa Rachel e Dina Sfat, para quem arte e vida dispensavam cercas.

Mordi a língua. Havia tempo não surgia uma novela adulta na tevê, cujos personagens nos brindam com a tal da perplexidade da natureza humana – além de fumarem e beberem uísque no meio do expediente. Gostei tanto que entrei na fase de sair no braço com quem falasse mal da Clô da Regina Duarte. Me senti no último estágio antes do internamento.

Curti cada gargalhada de Porcina que ela deu. E tenho para mim que Regina quis homenagear a Elizabeth Taylor – a da fase "tô bandida". Vinda de um casamento das trevas, Clô é premiada com a viuvez, mas repete o erro se enroscando com o cunhado traste, Samir. Estranho. Mas repetir-se é da vida. Eis do que nos serve o espelho mágico da boa dramaturgia – retratar com cores de Almodóvar aquela gotinha de veneno que sem saber provamos a cada dia.

Há outras figuras em carne viva nessa obra de Janete Clair: o milionário franciscano, a bela e seu bandido, a boa mãe adúltera, o miliciano humanitário, o gentleman negligente e a mocinha "porcatchona". Repare nos modos da Lili. Parece mentira, né. Isso é coisa de novela.

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