Uma das mais saborosas passagens da imprensa contemporânea envolve a decana Janet Malcolm, tcheca radicada nos Estados Unidos. Nos anos 1990, ao escrever um perfil sobre o pintor David Salle – uma cabeça coroada das galerias de Nova York –, a jornalista esboçou nada menos do que 41 “abres”, jargão usado para nomear o primeiro parágrafo, justo o que tende a definir o sucesso ou o insucesso de um texto.
Como se trata de Janet – conhecida por não escrever histórias para ninar –, a soma de “abres” errados não foi parar no lixo, mas publicada sob o título “41 inícios falsos”. O leitor que a julgasse à vontade. A recepção não poderia ser melhor: a epopeia frustrante de tentativas podia denunciar uma autora em má fase, mas ao mesmo tempo sugeria que Salle era um sujeito cujos pés não cabiam nos sapatos estreitos da reportagem. Cada trecho de redação descartado equivalia a um fragmento do rosto dele refletido num caco de espelho. Eis a graça.
Há muitos David Salle no mundo da cultura. Qualquer tentativa de encapsulá-los em nove linhas soa como uma mentira deslavada, cujo efeito nefasto é transformar um personagem convulsivo numa máquina de provocar cochilos. Não vale. Exemplo de entrevistado de risco? Liz Szczepanski, 71 anos, artista plástica paranaense, desde 1999 entregue a um exílio voluntário em Antonina, no Litoral. Ali vive às turras, invisível, cercada de fantasmas, na companhia de mais de uma dezena de cachorros.
Qualquer afirmação sobre Liz não passa de um “abre falso”. Sua vida e obra resistem aos truques das frases bem construídas, daí ser tão tentador lhe reservar um wiki, para começo de conversa. Filha de um padeiro de origem polonesa, foi criada numa casa de tias costureiras e operárias das fábricas de louças de Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba, sua cidade natal. Aprendeu desde cedo a ser tarefeira – na máquina de costura, na massa de pão, no barro. Na ponta do lápis: é artista gráfica refinada e merece ter seu nome escrito ao lado do de Poty Lazzarotto, Guinski e Carlos Dala Stella, para citar três.
Desconhece o refresco dos patrocínios. “Durango Kid”, como se dizia, sobre os que padecem de falta crônica de recursos monetários, não se intimida em recolher cacarecos que encontra pela rua. “Eu administro precariedades”, costuma repetir, ao falar de como permanece artista contra tudo e contra todos, mantendo-se no posto de referência nacional em bricolagem. Num dos raros momentos em que se permite um toque de humor, brinca que produzir sem dinheiro é com ela mesma. Realizou o impossível: não há como falar de instalação, cerâmica, desenho e escultura no Paraná sem passar pelo nome de Liz.
À capacidade de transformar um pano velho num sudário some-se a inteligência. Basta lembrar que, ao conhecê-la, o criador e semiólogo espanhol Julio Plaza, pasmo, defendeu que lhe dessem o título de saber notório – uma espécie de reconhecimento público da academia àqueles que chegaram sozinhos ao topo do saber. Era o mínimo que se poderia fazer por essa intelectual autodidata, criadora de seus próprios ideogramas, versada tanto em cultura caiçara quanto em alta literatura, autora de páginas e páginas de ensaios, contos, textos dramáticos cuja qualidade, espera-se, um dia serão reconhecidos. Em tempo – a brilhante Szczepanski concilia seus dotes manuais e intelectuais com uma capacidade olímpica em abraçar uma boa briga. O ringue é um de seus espaços preferidos, o que explica a alternância de atração e repulsa que seu nome provoca.
“Ora, por favor, arte sem conversa? Sou da reflexão. Não sou boba. Bobo vira diplomata. Artista que não pensa resvala na mediocridade. A arte não anda sozinha...”, dispara, ao se defender do conselho bovino que costumam lhe dar: “brigue menos, deixe para lá, não polemize”. Recomendação inútil. Szczepanski se encaixa na categoria de criadores radicais, que preferem provar da penúria a trair algum princípio. Tal disposição lhe custou caro. Perdeu prêmios, viagens, convites numa quantidade tão grande que causa espanto não tenha mandado a carreira às favas. “A tormenta está sempre atrás de mim”, resume.
Melhor do que arranca-rabo seria ver seu trabalho exposto e provar de seu pensamento
Não sabe dizer, por exemplo, há quanto tempo um curador de arte não lhe bate à porta. Ressente, claro, e aponta a metralhadora cheia de mágoas. Coleciona uma tamanha quantidade de histórias de traições, desmandos, rasteiras que poderia abastecer uma dezena de interessados em investigar aproximações entre estética e sacanagens. Ouvir suas narrativas doídas equivale a alimentar uma suspeita – a de que todo mundo aplaude Liz Szczepanski, mas poucos se dispõem a trabalhar com ela, movidos, quem sabe, pela maldita crença corporativa de que a cordialidade é o limite de todas as coisas. Agradece, mas de sua parte prefere o embate verbal, sua especialidade.
“Não sou boazinha”, devolve, enquanto teima em arrancar da memória mais uma narrativa surreal – para ilustrar. Envolvem obras desaparecidas, ameaças feitas por capangas disfarçados e – como não – a valentia de Liz, cujos teores poderiam inspirar um seriado de aventura. Faz o tipo que pega o bandido à unha, e ainda lhe fala de Lewis Carroll. Reclama ser a Geni em quem jogam bosta, a polaca rotulada de briguenta, a mulher sozinha que julgam não merecer respeito. Devolve desaforos com requintes. Melhor do que arranca-rabo, contudo, seria ver seu trabalho exposto e provar de seu pensamento. Aí é que são elas.
Szczepanski admite que nos 18 anos de isolamento antoninense seu acervo sofreu derrotas contínuas. Enchentes levaram parte da produção e colocaram em perigo o acervo fotográfico. Há também a frágil parte escrita. Sua relação com o Litoral – produtiva no começo, quando desenvolvia oficinas e um passeio de barco lítero-turístico pela Baía de Antonina – não encontra juiz à altura. Ao ser questionada por que permanece num lugar sem afeto, cantarola Travessia, standard de Milton Nascimento (“minha casa não é minha, e nem é meu esse lugar. Estou só e não desisto...”) e dá a resposta como um tiro: “Por causa dos cachorros”.
Aconteceu aos poucos. Na fábrica abandonada dos Matarazzo encontrou, à míngua, Morenaça. De outra feita veio o fila Andaluz Ruiz, seu cão de guarda. Tem os deixados no portão. Os que salvou do abandono. Os nascidos no quintal. Anotem: Cuzquita, Zapatta, Iaiá, Tuareg, Penélope Luzia, Merengue, Baby, Quiçá Alegria, Only One, Sorella Augusta, Pepeu, Avelã, Lazinha Chave de Cadeia, Pi e Esperança, “que está em tratamento”.
Como de praxe, transformou sua relação com os cães em happenings e instalações. Treinou-os em três línguas. Balsas feitas de garrafas pet se convertem em boias para a bicharada, em caso de cheias. Uma grande lona amarela, sob a qual os animais estão protegidos, é um abrigo, mas também uma peça digna da bienal, signo da solidão. Até mesmo a fúria dos vizinhos – que pela manhã abrem suas gaiolas para xingá-la, como costuma dizer – inspira stand-ups, encenados por Liz, ao lado dos caninos, sem plateia e sem aplausos. Chama-se O rei aromático e seus súditos fedegosos.
Esse texto bem que poderia começar por aqui – pela verdade da ficção.
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