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José Carlos Fernandes

Aristóteles na Estação Rui Barbosa

 | Foto: Ivonaldo Alexandre - Ilustração: Felipe Lima
(Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre - Ilustração: Felipe Lima)

De todos os autores que o ambulante Paulo Roberto Geller estudou na faculdade de Filosofia, Aristóteles ganha de lavada. É seu guru, seu Timothy Leary, seu Maharishi Mahesh Yogi. Quando fala do mestre, vai às nuvens. Esquece o que tem a fazer e transforma a inculta Praça Rui Barbosa – onde ganha o pão de cada dia – numa sucursal da escola peripatética. "O que é, é. O que não é, não é. Aquilo que não é, não pode ser...", papagueia o pobre, em frente da estação-tubo onde vende chaveirinhos para sustentar mulher e dois filhos miúdos, ameaçando os lucros da Casa China.

Graças ao pensador grego, Paulo entendeu que o particular depende do universal, que a essência é maior que a aparência, que existe "a razão última de todas as coisas". A frase é seu consolo, seu mantra na hora de resolver problemas, dos mais complexos aos menos filosóficos, feito proteger as canelas dentro de um biarticulado onde 230 passageiros às vezes se comportam como peladeiros da Vila Tostão. Experimente – de olhos vendados – para ver.

Paulo, a propósito, é cego. Cego de primeira viagem. Tem 30 anos e perdeu a visão há cinco, em decorrência da diabete. Não lê braile. Não tem senso de direção. Depende dos olhos de estranhos. Se ficar sozinho na praça, sente-se o próprio ceguinho do tiroteio. Nessas horas de desespero, recorre a Aristóteles e ao conceito de imutável. A escuridão não muda. A escuridão é.

A saga de Geller dá vertigens. Aos 9 anos, escutou pela primeira vez falar em insulina, palavra meio obscura para quem cresceu ouvindo alemão de colônia. "Quando o médico contou, entendi que ter açúcar no sangue era uma coisa boa", esvai-se Míriam, a mãe dolorosa. Além do mais, quem haveria de se preocupar. O garoto de olhos azuis clarinhos como o quê – chamariz para as gurias – usava óculos, "mas não houve livro em Marmeleiro que não tenha lido."

Depois de devorar a biblioteca municipal, veio o chamado divino, a entrada para o seminário vicentino, as lições de Filosofia e uma visão demiúrgica que mudaria todo o script: o nome dela era Suzana. Paulo a conheceu numa novena do Jardim Arapongas, em Colombo. Ato e potência. Causa e efeito. Confusão dos sentidos. Enleado em tranças, recorreu ao velho Aristóteles. E bingo. Prenhe de razão, passou a lábia no inflexível Maguila – o cachorro –, e ganhou passe-livre no quintal da amada. Mal sabia, mas estava a dois passos da sua verdade.

Em 22 de novembro de 2004, dia de Santa Cecília, cujo martírio foi ter os olhos vazados, Paulo Roberto Geller – o marido de Suzana – deu início a uma maratona hospitalar que faria Wolverine pedir água. Primeiro vieram as sessões de hemodiálise, depois os transplantes de rins e de pâncreas e a perda anunciada da visão, para sempre, como é para sempre tudo o que é. Confessa que rogou a Deus um milagre, mas entendeu que "devia tocar no escuro". Afinal, "há uma razão última para todas as coisas."

Hoje, quando dribla a vigilância dos fiscais da prefeitura na estação-tubo, passa a conversa no motorista e entra no coletivo para discursar e vender badulaques, outra coisa não faz senão aplicar a lógica aristotélica – o que lhe garante R$ 25 por dia e o rancho do mês. "Sou Paulo Geller. Eu sou cego..." É como se apresenta no ensaio sobre a cegueira da "Estação Rui Barbosa".

Paulo é o nosso Eugen Bavcar – o filósofo cego da Eslovênia. Os dizeres que faz no ônibus explicam a engrenagem que move o mundo. Ele traduz o que seja retinopatia, polineuropatia, fibrose intraocular ou creatinina.. De tão simples, dia desses, estando o filho acamado, Míriam mesma fez o serviço. "Juntei as minhas palavras, entrei no ônibus e falei." Não esqueceu nem a dica do própolis para cicatrizar as feridas. Só não falou de Aristóteles. Prefere o mistério. "Sei apenas que vista do meu filho escureceu. E que para clarear, só por Deus."

José Carlos Fernandes é jornalista.

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