Quando criança, Semana Santa para mim era sinônimo de Procissão do Senhor Morto. Ai, que saudade me dá lá se dava o encontro do Filho Sofredor com a Virgem Dolorosa. E se ouvia o canto da Verônica, de dar dó com seu latim tão maltratado quanto o Sudário que desenleava do alto de uma cadeira. Cá entre nós, à revelia dos efeitos especiais paroquianos, a cena valia por uns três dias seguidos de Sessão da Tarde ou por um domingo devarde no Lago Azul o do Umbará, claro.
Mas o melhor mesmo era a cerimônia das três da tarde na Sexta-Feira da Paixão. Na leitura do Evangelho se ouvia um sacerdote sorumbático, quase a soletrar: "Eloi, Eloi, lama sabactani" ou "meu Deus, por que me abandonaste?" Não tinha pio nem folhetinhos ao vento. Só os estalos das telhas de Eternit pelando. Toc-trec "eis o lenho da cruz". Já nos bastidores, a gurizada se partia de rir com uma tradução apócrifa do aramaico "Elói, Elói, tem lama no sapato." Era uma versão brotada do espírito de porco que rondava os paralelepípedos da Água Verde. Fazia-se pouco dos rigores da excomunhão. Ah, pecadores!
O fato é que no queimar das velas, a todo Elói que encontro me dá ganas de perguntar "e aí, tem lama no sapato?" Quase todos. O Eloi Pires Ferreira, sem acento no "ói", 53 anos, jornalista, cineasta e "polaco enrustido", como ele mesmo se define anda mais para "meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" do que para heresias e sacrilégios de guris. Explico.
Na década de 80, ele largou as redações para abraçar o cinema. Virou uma versão flex das duas atividades. Magricela e descabelado feito o repórter Peninha, tem mil ideias na cabeça, a imagem e semelhança de Glauber Rocha. Mas acima de tudo é um curitibano incorrigível. Dois de seus curtas-metragens Vamos juntos comer defunto e Polaco da nhanha são tão a nossa cara que cada recém-nascido dessa excelsa capital deveria ganhar um "kit pompom", contendo cópias dos filmes acopladas às fraldas e ao Hipoglós. Glória. O problema é que faltava ao diretor um longa-metragem. Foi aí que se deu o calvário de nosso Eloi, Eloi, lama sabactani.
Tudo começou quando Pires Ferreira assistiu na TV a uma reportagem sobre o padre Marian Litewka, ex-coroinha de Karol Wojtyla (ahã, ele mesmo) em Cracóvia. Ao se tornar missionário nas terras infiéis do Brasil, estranhou o que viu: o país tinha matas e índios de menos e estradas e caminhões de mais. Raios de missão. Pois que fosse feita a vontade do Altíssimo: Marian ergueu uma capela na caçamba, tomou a boleia e saiu pelas estradas do Paraná dizendo missas em postos de gasolina.
Eloi sacou que a saga do cura caminhoneiro valia um filme. De pronto convocou os amigos Bolinha e Olympio para fazer o roteiro do belo O sal da terra, livremente inspirado na quilometragem de Litewka e estrelado por Édson Rocha, o melhor sacerdote que já vi na tela grande. A obra foi arquitetada como uma Eucaristia. Mas foram necessárias milhares delas para acabá-lo. Como o dinheiro veio pingado que nem esmola, a produção consumiu nada menos do que dez anos de trabalho. Para ajudar, quando finalmente estreou, em 2008, o filme foi atropelado na BR3 pelos blockbusters da vida. Meu Deus, meu Deus...
"Putz, acho que história de padre afugenta", penitencia-se Eloi a essa altura já um candidato a mártir da cinematografia. Seus algozes vão de investidores e críticos insensíveis a programadores preguiçosos. O que se há de fazer? Outro filme, oras. Eloi já se encontra em produção de um novo longa Zero Grau, uma fita sobre a estranha combinação de trânsito infernal e temperaturas polares. Adivinhem onde se passa, polaquitos de la nhanha? Pires se entrega, mas com senões: "Não sou nostálgico nem me limito a falar de Curitiba. Faço é crônicas."
De fato. Ao assistir aos filmes do diretor, nota-se que deve ter sido um daqueles piás que jogavam bola-de-meia e que se regalavam até com procissão de Sexta-Feira Santa. Colecionou um bom punhado de histórias de lá para cá a dos escoteiros é ótima, mas nem te conto. Diz o pinta: "Gosto do que me diz a gente que encontro por aí. Sou estradeiro como padre Marian".
Viu? Eloi tem lama no sapato.
José Carlos Fernandes é jornalista.
P.S. O sal da terra está em cartaz no Unibanco Arteplex e no Cinemark de São José dos Pinhais.
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