Se o doutor Pedro Bloch vivo fosse, publicaria essa na célebre coluna "Criança tem cada uma", da revista Pais & Filhos. Caetano, então com 6 anos, foi com a mãe à Parada Gay. Na volta, encontrou pela rua um coleguinha de classe e contou o que fizera naquela jovem tarde de domingo. No manhã seguinte, levou o troco. "O Caetano é gay" trovejou o pequeno tirano no pátio da colégio. Ao que respondeu sereníssimo feito o último Buda: "Eu não sou, mas minha mãe é."
Quem conta o conto é Angelita Thomaz de Lima, 39 anos, a mãe, ainda em graças com a tirada do seu Caetano. Chamada pela diretora, confirmou sem rodeios a sentença do filho. Melhor remédio. O piá talvez não precise um dia derramar um toró de lágrimas no divã do analista. Pelo menos é o que Angelita acredita: as crias devem saber da orientação sexual dos pais. Se não fazê-lo, como sabê-lo?
Para saber se está fazendo a coisa certa, correu atrás de quem entende do riscado, tornando-se uma habitué do Grupo Dignidade, ONG voltada para o público LGBT. Foi ali que cruzou o caminho da historiadora carioca Marise Felix, 53, professora do Colégio Estadual Papa João Paulo I, em Almirante Tamandaré. Tinham histórias muito diferentes, mas danadas de parecidas. Deram de tricotar aguarde para saber.
Até pouco tempo, a única ligação de Marise com os homossexuais se resumia às ganas de "pular no gogó" dos que discriminavam um seu colega de trabalho. Ele lhe implorava que deixasse quieto. Ela alguns tons acima queria saber "qual é o problema?" Foi o que precisou perguntar a si mesma no dia em que descobriu a identidade sexual da filha de 16 anos. Mal teve tempo de responder.
Tão logo, chegou-lhe aos ouvidos que a filha e a namorada tinham sido convidadas a se retirar de uma loja, onde entraram de mãos dadas. Ficou arara com a loja, disposta a pô-la abaixo. "Se eu brigasse naquela hora, ia brigar o resto da minha vida." Ao forrobodó, preferiu se alistar nas fileiras do GPH Grupo de Pais de Homossexuais, fundado em São Paulo nos anos 90 pela professora universitária Edith Modesto. Foi a bonança.
No GPH do qual hoje é representante regional Marise encontrou mães e pais que, como ela, não sabiam xongas sobre filhos diferentes e suas vidas em segredo. Segurem-se. Havia quem tivesse dado na cara dos seus seguido de um cinematográfico "na minha casa, não". Quem os tenha posto porta afora. Quem sussurrasse um tolo "é fase". E quem soletre ainda hoje a tragicômica "onde foi que eu errei..." Palavra de ordem: virar o disco.
No GPH, não se paga imposto para sofrer. Desestimula-se especular causas, nutrir culpas, acalentar inquisidores. "A mãe é quem dá o tom na família. Se ela impõe que o filho seja respeitado, é meio caminho andado. Como é que um adolescente vai ser tolerado na rua se o mal começa dentro de casa?", questiona a intrépida Marise. Ela respira e pede uma limonada ao garçom. Comenta que adorou Milk, o filme que deu o Oscar a Sean Penn. Recomenda, a quem interessar possa. Golpeia o copo e volta ao colóquio. "Cansei de ouvir a frase fulana tem um filho que é assim. Assim?" Lá vem sabão.
Dia desses, entregou-se aos dizeres sábios de um ímã de geladeira.: "O ódio não é um valor familiar". Fez da pecinha um mantra para sanar os intolerantes. "Por que tanto medo? Quem souber a resposta, me conte?" Limonada. O resto é mar: não negar à filha gay nada que reserva à hétero. E querer um mundo melhor para ambas. "Dá para entender?"
A partir de 13 de março, Marise e Angelita iniciam uma nova confraria. Uma vez por mês, vão promover rodadas de conversa com pais homossexuais, com ou sem filhos. Local: "a casa da mãe" como merecia ser chamado o Dignidade, na Praça Carlos Gomes. Aviso aos navegantes: não é auto-ajuda, sessão de cura nem muro do xororô. É para segredar e quem segreda sabe. Angelita até brinca: "Esse grupo nasceu do meu egoísmo. Quero dar respostas para o Caetano."
Adulto tem cada uma.
José Carlos Fernandes é jornalista.