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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Um dos filmes do meu afeto se chama Elizabe­­­thtown, dirigido por Cameron Crowe. A trama é "quase" doce: empresário fracassa na corporação em que atua e decide se matar. Antes disso, faz uma viagem solitária pelos EUA, em visita a lugares simples e inspiradores. Ao final da jornada, o suicida deve decidir se vai ou não dar cabo à vida. O desfecho é fácil adivinhar.

Confesso já ter copiado a ideia e feito um roteiro à moda Elizabethtown. Ofereci-o a um grupo de formandos em Jornalismo. Pedi-lhes que, caso pensassem em desistir da profissão, antes visitassem o Zé Cordeiro, da Vila Torres; falassem com a professora Antônia, da Escola Ângelo Trevisan; e andassem de ônibus com o médico Ralf Kyrmse.

Ao conhecer essas figuras, batata, não abandonariam por nada o ofício escolhido. Permaneço pensando assim. Mas cá entre nós, a ferocidade imobiliária não ajuda muito no exercício de cultivar espaços capazes de nos dar alguma alegria gratuita. Do dia para a noite, pimba, vai ao chão a casa onde alguém incrível viveu, sem ao menos lhes reservar a fineza de uma lembrança.

Cito um exemplo. O endereço onde morou Maria Trevisan Tortato, no alto da Rua Ângelo Sampaio, vai dar lugar a um condomínio elegante. Tenho para mim que o local deveria se chamar "Edifício Maria Polenta", numa alusão ao apelido que deu fama à inquilina. Seria inclusive lúdico: mal não faria aos infantes que vão desfrutar do playground se perguntar quem era a tal senhora que ali criou galinhas antes deles chegarem. Tenho certeza que seus olhos brilhariam mais do que diante de um playstation.

Dia desses, fiz um teste de mercado com conhecidos. Disseram-me em coro: "Ninguém compraria apartamento com esse nome". Discordo e faço ó. Dona Maria era uma santinha e tinha o dom sobrenatural de consertar ossos quebrados, uma socorrista caseira em épocas de escassos ortopedistas. Por meio século bateram à sua porta estropiados de todas as castas. Sem falar nos jogadores de futebol, coxas e atleticanos, sem distinção.

O "Polenta" lhe teria sido dado por causa do apelido de um irmão que trabalhava na Todeschini, ali em riba, o Antônio Polenta. E não faz sentido dizer que soa cafona à cidade que faz filas para comer polenta em Santa Felicidade. Em Portugal, meus parentes são os Cebolas, e aviso que não é por causa do bafo. Pelo menos foi o que me garantiram.

Em tempo, a popularidade de Maria era sem igual. Salvo engano, ela batiza uma praça, uma rua no Novo Mundo, uma unidade de saúde e um restaurante. Nada mais natural que o endereço onde morou também lhe rendesse as honras devidas. Até traria bons fluidos ao local.

A propósito, os nomes dados aos edifícios mereciam um estudo de antropologia urbana. Tenho cá minhas hipóteses. Assim como na literatura, seguem fases. Aqui perto de casa tem um prédio da "escola indigenista" – o Uirapuru –, cujo letreiro é um convite a cantar serestas. Nada mal. Outra fase imobiliária marcante é a "paranista", quando frontões reverenciam ilustres como "Didi Caillet", para citar uma, e nos ilustram.

Como tenho amor ao meu pescoço, vou me furtar de soltar traques contra as fases italianas, francesas e inglesas. Embora pedantes, essas nomenclaturas têm o mérito de amenizar nosso complexo de bichos do Paraná. Nos auxiliam a dominar uma outra palavrinha em língua estrangeira. E permitem sonhar com uma excursão a Versailles.

Quanto aos que ainda acreditam nos poderes dos mapas afetivos, resta usar a imaginação. Dica: na próxima vez que você descer a Ângelo Sampaio, lembre-se que em 22 de abril de 1959 um cortejo de cinco quilômetros, a pé, acompanhou por ali o féretro de Maria até o Cemitério do Água Verde. Para você, a rua nunca mais será a mesma, ainda que tudo em volta diga que vivemos, sei lá, em Notting Hill.

Ah, se der, vire à direita e dê um pulo na quadra 177 do cemitério. Ali ela jaz. Deposite uma flor. E veja o que dizem as plaquinhas deixadas pelos que fizeram esse mapa antes de nós: "Grato Maria Polenta".

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