| Foto: Antonio Costa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O cabeleireiro Sandoval Tibúrcio, 46 anos, já rodou mundos. Da pequena Itumbiara, em Goiás, onde nasceu, mandou-se para Cuiabá. Homem feito, radicou-se no Rio de Janeiro. Mas, num acaso, inventou de descer até Curitiba – onde permanece há uma década por força de uma paixão: Waldice, sua mulher, ama a cidade e prefere nossas temperaturas polares aos calores tropicais. Acontece.

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Apesar dos muitos quilômetros rodados, o percurso mais importante de Sandoval se reduz a alguns passos dentro do Shopping Crystal, entre o salão Princess Hair e a Livraria Saraiva, onde – três meses depois de aqui chegar – entrou expedito para comprar um caderno e uma caneta.

Pois com esses apetrechos mudou sua história. Tinha a 8.ª série no ato da compra. Ontem, formou-se em Gestão Pública na Facinter e pode se gabar de ter distribuído nada menos do que 2,2 mil exemplares do romance Magnitude, o livro que começou a escrever naquele dia no Crystal. Atentem.

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Menino da roça, Sandoval teve um percurso escolar ao sabor das pragas. Tirando ter lido Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, de pouco lhe valeram os ditados e as tabuadas. Ao fazer 18 anos, achou por bem se demitir do sistema de ensino. Aos 22, tornou-se cabeleireiro.

Entendeu que fizera a coisa certa quando viu entrar num salão carioca ninguém menos do que Renata Sorrah – seu ídolo desde os tempos de Heleninha Roitman. Bamboleou, mas tirou faíscas da ponta da tesoura. Olé. Depois lhe sobreveio um pileque de ídolos. Tosou até os cabelos do cantor Latino. Ganhou notinha em coluna social. Ouviu chiques e famosas elegendo-o the best of Rio. E entre tantas, ai, não reconheceu Isadora Ribeiro debaixo do secador – periri. Até que Waldice encasquetou com Curitiba.

Cá entre nós, a cidade não desceu bem a Sandoval. A gota derradeira de laquê caiu quando uma cliente quis saber se ele, o eleito das emergentes da Barra, tinha feito "cursinho" para cortar cabelos. Restou-lhe lamber as feridas. Depois comprou o caderno e a caneta – iam ver só.

Mas não fazia a mínima sobre como começar a escrever. Sopraram-lhe que a gente principia inventando um nome e uma data. Pois o cabra se chamaria Juca e sua história principiaria em 1950. Quando somava 50 páginas, mostrou-as à professora de Literatura Ana Lúcia Gianello. Desconheço de que lado Ana Lúcia está no ringue da "exclusão linguística", debate que mo­­­­biliza Becharas e Fa­­­­racos. O que sei é que ela disse abracadabras: "Crie. O resto é passível de correção."

Pois Sandoval voltou à escola, concluiu o livro e – nova provação – entregou-o em confiança a um catedrático. "E se for uma merda?", fuzilou o mestre. Sandoval se viu reduzido a um leitor das Júlias e Sabrinas deixadas pelas clientes. Mas tinha gostado de Meu pé... E devorara Madame Bovary, de Flaubert, uma obra-prima. Merecia ser escritor.

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Um sinal veio a galope. Quatro meses depois, o catedrático lhe entregou os originais. Disse quase nada. "Mude o título. Isso não é nome que se dê a um grande romance..." E se mandou. Como Sandoval não andava para desfeitas, tomou por um elogio. Deu ao texto o eloquente nome de Magnitude – perfeito para uma saga equestre pontuada por virgens desonradas e heróis sertanejos, bem à moda do autor, que cultiva botas de caubói e os modos de Goiás.

Ele é mesmo um puro-sangue. Entre "Juca, 1950" e o desfecho passaram-se 8,5 anos. Sandoval, todo dentes, bateu na porta de 50 empresas atrás de patrocínio. Nada. Até que Jaime e Marly Minatti – do Salão Marly, onde trabalha –, acabaram com a agonia. Os exemplares escoam em meio à rotina de reflexos e depilações.

Promete mais. Tem um novo romance a caminho. E desta vez se passa num salão de beleza. "Todas as mulheres são um pouco Madame Bovary", comenta, tsc-tsc, enquanto analisa os estragos deixados por uma tintura loira de quinta. Gustavo Flaubert no Salão Marly. Mundão bom. Brindemos com Moet & Chandon.