Há uns bons anos, recebi uma carta de Íris Koehler Bigarella. Antes de abrir, fiz o sinal da cruz, pensando ser mais um daqueles sermões com os quais os leitores costumam brindar os jornalistas, sem assoprar, é claro. Não foi o caso. As palavras de Íris eram puro oxigênio. Guardo-as até hoje, para que me consolem nos dias de sufoco, que por certo virão.
Num dia desses, a coincidência. Decidi fazer uma limpa nas gavetas e encontrei um envelope com aquelas bordas em verde e amarelo que fazem cartas parecerem papiros do Antigo Egito. Não era endereçado a mim, mas a Jamil Snege, cronista da Gazeta do Povo entre meados da década de 1990 e maio de 2003, quando morreu. A remetente era Íris Koehler Bigarella, a mesma dos meus guardados.
Não lembro por que a encomenda deixou de ser entregue ao Jamil o que lhe renderia alguma alegria na dor. Mas suspeito: foi postada em novembro de 2002, quando o escritor já andava às voltas com maratonas hospitalares. No intervalo em que ficamos à espera de melhoras, a carta deu uma pirueta rumo a uma pilha de fotocópias, agarrou-se a uma velha pasta e ali permaneceu oito anos, à cata de um carteiro.
Nesta semana, debaixo de desculpas, devolvi-a a Íris. Não sei o que continha e preferi não perguntar, em respeito à correspondência alheia. Mas não tive os mesmos pudores diante daquela senhora esguia de 87 anos, formada em Geografia, História e Antropologia, mulher de João José Bigarella decano da Geologia no país. Pedi palavra. Ela não negou.
Íris é natural da pequena Guajuvira pelas bandas de Araucária onde sua família fez fortuna produzindo fósforos e palhões. A Depressão de 1929 levou os vinténs dos Koehler-Asseburg, mas não o apetite pelo conhecimento. O pai de Íris engenheiro formado na Alemanha não cabia entre o Rio Iguaçu e a Estação Guajuvira e flanava pelos círculos ilustrados de São Paulo. Casado com uma das herdeiras da Casa Hertel sinônimo de música no Paraná legou à filha a herança das letras e da ciência.
Ora, as faíscas entre Íris e Bigarella durante uma expedição a Matinhos foram tão naturais quanto as marés. "Sei não ele deve ter prestado atenção mais nas minhas pernas do que no meu intelecto", diverte-se. Uniram-se, tiveram filhos, ela acompanhou as glórias dos 200 trabalhos acadêmicos do marido. Até que lhe caiu nas mãos o livro O homem e seus símbolos, de Carl Jung.
Foi de uma vez por todas. Mesmo já posta em golinhas bordadas de cambraia, a mulher madura partiu rumo à tal da "expansão da consciência", expressão amada pelos hippies e pelos leitores de Hermann Hesse. De sola, descobriu a biodança, estudou em Zurique, girou mundo, pintou telas e deu pulos ao ouvir um palavrão da boca do artista Edílson Viriato um de seus gurus.
Era só o que faltava à boa moça germânica. Gargalha ao lembrar. "O Bigarella é racional. Eu sou assim..." "Mais café?", emenda, enquanto fala do México, de xamanismo, do último lançamento de Elizabeth Gilbert. E do livro que escreveu agora em via de ser publicado na Inglaterra. "Almoça com a gente?"
Ano passado, sem alarde, Íris lançou o catatau O grande enigma, uma espécie de Livro Vermelho, de Jung, no qual reúne imagens, poemas e excertos que condensam a maior de suas habilidades: fazer as complexidades parecerem simples bolinhos de chuva.
Quanto à publicação em Londres, "coincidências". Alguém sempre sabe de alguém que conhece Íris do tatame, do chá, do inglês, da acupuntura, dos EUA, do bairro do Cabral ou da internet. Um desses conhecidos passou pela terra da rainha e falou de uma mulher cósmica, lá de Curitiba, "mas só vendo".
Só vendo. Ela faz versos e pinta, fala de Jung e de Bigarella. Vez em quando a bela manda cartas. Do destino das missivas pouco sabe. Várias jazem para sempre. Outras ganham resposta. Algumas lhe são devolvidas no prédio onde mora, fazendo dali a porta do arco-íris.
Deixe sua opinião