"Eu estava num generoso parque de Amsterdã quando contemplei a centelha solar numa gota dágua. Nesse momento me veio a ideia de escrever um dicionário em sete línguas..." A frase, dita pelo curitibano Marcelo de Menezes Simões, 42 anos, certamente não entraria para o Livro das Citações, de Eduardo Giannetti. Já o que ele tem passado depois da tal visão da gota de orvalho bem faria Jack Palance, se vivo fosse, dizer: "Acredite se quiser."
Marcelo se mandou do Brasil em 1998. Trabalhou como "empregado de mesa" em Portugal e açougueiro na Holanda. Em cinco anos de cucaracha, não se pôs a juntar euros e a tirar fotos de castelos: tornou-se um fino observador da nova invasão bárbara no Velho Mundo, feita por turcos, ucranianos, etcetera e tal. "Um estrangeiro que sabe dez palavras na língua local é rei. Há 10 milhões de pessoas passando aperto para conseguir serviço", calcula.
Foi para essa multidão que decidiu escrever sob o céu de Amsterdã um dicionário em que 4.770 palavras aparecem em português, espanhol, italiano, francês, inglês, holandês e alemão, somando 52 mil itens. Como é matemático diplomado, criou um mecanismo aritmético para fazer o leitor encontrar palavras cuja letra inicial nem imagina qual seja. Exceto "banana", praticamente igual em qualquer idioma, o resto é um nó. Que tal mandarijntje? (tangerina em holandês) Ou unverheiratet? (descasado em alemão)
"Pois, seus problemas acabaram". Cada verbete do Dicionário Simões é numerado. Um brasileiro que queira pedir um suco de laranja na Itália só tem de descobrir que o número de "laranja" é 248 e sair "parlando" a língua de Dante. O resto da frase se resolve na cara-de-pau. Segundo o linguista diletante, os garçons de Santa Felicidade já fregueses estão adorando a novidade.
O que mais impressiona, contudo, não é a engenhosidade do pocket book, mas a saga para publicá-lo. Na Europa, Marcelo era um Durango Kid. Fazer a pesquisa implicou pedir as contas no açougue para se enfurnar em lan-houses. O dinheiro, claro, secou mais rápido do que o orvalho, mas a obsessão pelo dicionário, necas. Foi para arrematá-lo que decidiu voltar ao Brasil. Pior viagem. Aqui, a história do sujeito que queria civilizar os "estranjas" se transformou na triste crônica de um ambulante sem-teto.
Como diz Zeca Baleiro, "vida não é novela", mas a de Simões bem parece uma. Ele começaria a trama no núcleo dos ricos do Morumbi e terminaria no dos pobres da Vila Vintém. Aos fatos. Bem-nascido, estudou em colégios como o Bom Jesus, experimentou a fortuna e a proximidade com o poder. Na adolescência, via passar pela sala de sua residência ninguém menos do que Leonel Brizola. Até que la doce vita azedou veio a fase de mochileiro, a pindaíba e o desejo de redenção com a publicação do dicionário, uma espécie de bastião da dignidade perdida.
Mas que nada. Para finalizar o livro no capricho, Marcelo se desfez até da casa própria na minúscula cidade de Vitorino, perto de Pato Branco. Depois disso, restou-lhe se mudar para o olho da rua, hoje seu endereço fixo. Tem duas mudas de roupas e vive da caridade de estranhos em geral, fila boia na obra social dos frades capuchinhos das Mercês. São já dois anos e meio de vida no sereno. Numa dessas noites geladas, Simões descolou uma caixa de geladeira para dormir. "Aconselho aos desesperados", diz o sujeito que personifica um dos mitos da miséria a de que existem mendigos que um dia foram gente graúda.
É o caso o solene Simões é um lorde. Fala com pompa de sua procura pela equação geral dos números primos e dos planos de se dedicar à literatura. Enquanto esse dia não vem, circula pela capital com uma mochila apinhada de dicionários. Dia desses, reencontrei-o num grande supermercado da Água Verde, a postos. "Já estou lidando com uma nova edição. Revista e ampliada. Preciso agora é de um editor. Será que alguém se habilita?", comentou, em meio a um cortejo de carrinhos e de gente fazendo muxoxos para os cachorros de um petshop, logo ali. É seu Zeca, vida não é novela.