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José Carlos Fernandes

O show tem de continuar

 | Foto: Priscila Forone Arte: Benett
(Foto: Foto: Priscila Forone Arte: Benett)

Sueli é maquiadora. Há quase 40 anos. E quase sem folga. Dos 365 dias do ano, calcula, em 300 repete o ritual de espanar pó de arroz em pelo menos meia dúzia de caras-pálidas. Não raro, quando convocada pela produção de grandes propagandas, passam pelas suas mãos 60 figurantes de uma tacada só. Lerê-lerê. No meio desse mar de gente vendo sumir por encanto olheiras e crateras, tem sempre quem lhe pergunte "como se chama mesmo?". "Sueli Queirolo". É o que basta para que seja ribombada de perguntas sobre o circo.

O sobrenome Queirolo tem mel. Mesmo quem não gargalhou com o palhaço Chic-Chic sabe: trata-se de uma das mais importantes famílias circenses do século. E quis o destino, ou sei lá o que, parte dessa aventura se passasse na um dia chamada "Cidade Sorriso".

Não era nada risonha – como percebeu a trupe ao desembarcar aqui pela primeira vez, nos idos de 1919. Mas os Queirolo fincaram estacas mesmo assim, como conta o jornalista Luiz Andreoli no belo livro O circo e a cidade. Sueli faz parte dessa estirpe. E dela querem saber toda sorte de maquiados – de Fernanda Montenegro ao morador do Tatuquara que participa de um comercial da prefeitura.

Babei em duas horas de conversa com essa castiça descendente de Otelo, de Petrona, de Sérgio – o Capitão Furacão – e de Lafayette. Pudera. Perto dela meu passado é uma canja de hospital. Suas memórias parecem saídas de O maior espetáculo da Terra, de Cecil B. DeMille, alegria nossa na saudosa Sessão da Tarde, quando agarrados a um pacote de bolacha Maria sonhávamos ser Charlton Heston.

Achei graça do que Sueli me disse sobre os almoços dos Queirolo. Eram quase iguais aos lá de casa: arroz, feijão e bife, mas nem uma nem duas vezes os seus estavam à mesa pintados de palhaço, dos decanos aos fedelhos. Por ironia, foram todos fichados no Dops como subversivos, inclusive Sueli. Vá lá que comandassem a invasão dos quartéis durante a "Chegada do Papai Noel da HM", espetáculo a cargo da família nos tempos da ditadura.

Ainda ginasiana de saia plissada, Sueli deu de manjar sua tia Zefe se pintando para viver na arena uma Helena de Troia ou uma Dalila de Sansão. Pegou jeito pro negócio. Nem carestia lhe afligia: na falta de rouge, usava tinta escolar mesmo. Uau. Bela, tornou-se modelo para a logo da holandesinha da Batavo. Exótica, virou uma locomotiva psicodélica tão requisitada quanto a mulher do atirador de facas. "Pinto até com canetinhas hidrocor", avisa.

O grande Circo Queirolo acabou em 1968. Depois ganhou versões mais modestas, até virar passado de vez. Mas o circo não morre nunca. Sueli é o caso. O que ela faz é minicirco no camarim. Cada um dos seus centenas de milhares de maquiados saem do make-up direto para a cena – na tevê ou no teatro. A cor no rosto dá coceira boa. Há o tímido incorrigível que se torna palhaço. A moça feia pronta para um book do J. Durán. Como tia Zefe, os maquiados viram do avesso.

Sueli Queirolo, claro, recebe honrarias. Gordos álbuns de fotografias registram encontros com as celebridades nas quais já deu um trato. "Falta o Gianec­­chini", suspira. Quem sabe ele recebe o recado. A galeria passa por Rodrigo Santoro, Giulia Gam, a finada Nair Bello, Camila Pitanga, além de políticos, como o casal Richa, e anônimos, feito os velhinhos da Nissei.

O que eles falam quando chegam em casa a gente imagina. "Sabe quem me maquiou hoje? Uma guria dos Queirolo..." Quiçá lembram do circo e fazem uma micagem. Com Sueli não é diferente. Às vezes, ainda ouve o barulho da piazada correndo nas arquibancadas nas matinês. E nunca lhe passa em branco um céu estrelado. Lembra-lhe a lona altiva sobre o picadeiro. Ai, ai. Vamos nos maquiar?

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