| Foto: Foto: Daniel Castelano

Marcello Grassi Dias tinha perto de 4 anos de idade quando reparou que o personagem de um filme transmitido pela tevê trazia um barco desenhado no peito. O ator era ninguém menos do que Kirk Douglas, como mais tarde veio a saber. E o desenho, uma tatuagem – arte cultivada por prostitutas e presidiários, entre outras castas às quais um guri não precisava ser apresentado. Tarde demais.

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Menos de uma década depois de ter visto Kirk na telinha, Marcellão, como é chamado, pegou o acerto no primeiro emprego e se mandou para o Shopping Itália atrás do Dal – um dos raros tatuadores em atividade na pacata Curitiba das décadas de 70/80. Tinha então 13 anos, penugens na cara, mas passado da idade de decalcar figurinhas do chiclete Ploc no braço – o que chegara a fazer em escala industrial.

Foi seu dia D. Passou o dedo no catálogo até encontrar uma imagem que tivesse o tamanho do seu bolso. Pronto. Recebeu em batismo uma modesta águia no peito – e se viu atacado por corridões e impropérios. O pai lhe queria arrancar o desenho com uma lixadeira. E um professor do Colégio Estadual do Paraná o pôs para fora da sala de aula. Levou na cara que aquilo era coisa de bandido e de drogado. "É isso que você quer ser quando crescer?"

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Marcello cresceu e passou para experiências mais radicais – como a de ser cobaia de si mesmo. Dos tempos de autotatuagem, tem ainda hoje uma diabólica pin-up com chifres, pernas de Ana Hickman e uma motosserra na mão. "O astral é de quadrinhos", justifica-se, já que ficou conhecido por desconversar quem lhe pede para gravar demônios e quetais. Sua primeira obra em epiderme alheia, aliás, é um anjo caído do céu. E ele perdeu a conta da quantidade de Marias e Iemanjás que produziu – sem falar em Che Guevara, divindade por tabela. "Só faço figuras do bem", avisa o sujeito que é do tamanho de um armário e hoje tem mais de 70% do corpo tatuado – incluindo o couro cabeludo.

Tatuagens religiosas são a grande fonte de pedidos nas casas do ramo – um negócio que movimenta 350 profissionais só na capital. A segunda maior clientela é a fashionista, turma da qual Marcello se esconde. Tattoo virou moda. E isso o incomoda. Freguesia das boas, garante, é a que entende tatuagem como memória da pele. É um lance mais filosófico, saca. E um mar de boas histórias.

Certa vez, o tatuador atendeu um homem de 86 anos, que lhe pediu para fazer uma rosa. Logo notou que na pele dele havia uma flor inacabada, em cuja origem se escondia uma daquelas sagas românticas da Sessão Coruja. O cliente fora marinheiro quando jovem. Ao descer no Porto de Santos, caiu de amores por uma garçonete de nome Rosa, beldade de aliança no dedo. Restou ao pobre Popeye curtir a fossa na mesa de um tatuador: pediu que lhe cravasse, sem dó, uma rosa no peito. Mas eis que a musa interrompe a sessão e... Viveram juntos 50 anos. Quando Rosa morreu, o velho navegador procurou Marcellão para concluir a imagem interrompida na mocidade. "Ele faleceu dez dias depois. Soube que estava feliz", conta.

O mundo do tattoo apresentou Marcello a tipos que habitam os subterrâneos – e até mesmo um sacerdote que cultiva a tatuagem com a cautela de um cristão das catacumbas. "O preconceito ainda é muito forte", declara, com conhecimento de causa: perdeu a conta das barretadas que levou, particularmente ao tentar transitar na área da saúde, sua nova seara.

Há pouco tempo, em companhia da mulher – médica que atua no resgate de vítimas de acidentes –, o tatuador experimentou o lado ER da vida. Só havia sentido fascínio igual ao ver Kirk Douglas na tevê. Foi o que bastou. Aos 40 anos, decidiu dividir as agulhas com a atividade de socorrista do Siate/Samu. Dá para imaginar a cena: os acidentados vão enxergar a seu lado um homem cuja pele está tomada de desenhos que sobem pelas mãos. São como cicatrizes que encontraram a beleza. Essa é a esperança dos que sangram. Tudo a ver.

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jcfernandes@gazetadopovo.com.br

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