A curitibana Elisabeth Seraphim Prosser é moça de fino trato. Em menina, estudou piano com a devoção de uma noviça. Obediente ao figurino, debutou no Clube Concórdia e formou-se na Belas Artes, seguindo os passos da mãe a exímia musicista Ingrid Seraphim. Ao chegar à pós, decidiu gastar suas milhas dedicadas à alta cultura estudando a obra do barroco Monteverdi, cujos madrigais eram um bálsamo para os ouvidos.
Ia tudo muito bem até que um professor pavio curto quis saber, oras, se ela tinha uma composição esquecida de Monteverdi. Iria, quiçá, à Itália? Necas. Pois que prestasse mais atenção ao que estava próximo. Obediente, debruçou-se sobre a obra do padre José Penalva, um gênio que morava ali no Rebouças.
Serviu-lhe de lição. Anos depois, a aluna Érica Linhares lhe tomou de assalto uma aula para falar, e bem, de pichos e grafitagens. A exemplo de nove entre dez, Beth julgava sprays e seus atiradores um caso de polícia. Além do mais, ainda amargava o prejuízo de ter de limpar seu muro alvejado por uma tag como são chamadas as assinaturas deixadas pelos grafiteiros.
Ligou o alerta. Até tropicar na rua com a grafitagem que dizia: "É proibido calar catarses", de Diogo Marques, também autor do documentário Urbanographia Digitalizada de Baixa Resolução. Ora, nem a frase nem o filme lhe pareceram coisa de candidatos a longa hospedagem em Catanduvas, mas um exercício de inteligência. Lembrou-se das "lições de Monteverdi". Aquilo fosse o que fosse lhe dizia respeito.
Foi fácil encontrar Diogo et al. A pianista ficou sabendo de um encontro de grafiteiros no Boqueirão e se mandou para lá, com a fúria de quem cruza oceanos. Muitos não lhe foram todo abraços, é verdade. Senhora Prosser era uma estranha no ninho. Mas não chegara tão longe à toa. Insistiu. Venceu.
Hoje, sete anos passados, a Beth da Belas é popular do Sítio Cercado ao Atuba. Experimente perguntar ao Cimples e ao Deivid Heal e verá. Pudera a pianista coleciona cerca de 13 mil fotos de grafites, registrados em manhãs de domingo, quando se escafede em expedição para as franjas da capital. "Faço a leitura dos muros", resume, com a voz de pluma de aluna do Sion que foi. Um luxo.
A jornada já lhe rendeu um livro Graffiti Curitiba, resultado de tese orientada pela jornalista Myrian Del Vecchio de Lima, da UFPR, também catapultada aos encantos dos seres urbanos. O trabalho é mesmo de render o mais intrépido inimigo das grafitagens. Em suas andanças por ruas que jamais procuraríamos no Google Maps, Beth encontrou desenhos dos deuses em casas recém-demolidas, em becos e em carrinhos de catar papel. Passam pelas lentes palavras de ordem como aquelas que fizeram Paris tremer em 1968 , declarações de amor e gritos de dor.
"Protesto corresponde a 45% dos grafites, humor a 43% e afetividade a 12%", calcula, com autoridade de quem já decifrou 5 mil imagens e as distribuiu em "100 unidades de sentido". "Não é só a rebeldia que move esses jovens", reforça, sem esconder que pesquisa a fundo, mas que tem um bocado de pressa: o tempo de existência dos grafites é um estalo. Sobre eles recai a tinta branca do esquecimento.
Avisei à Beth que esse assunto mexe com os nervos do cidadão. Ela respira fundo. Não esconde que gostaria, como tantos, de ver menos pichos por aí. Mas ressalva que boa parte dos pichadores há de se tornar grafiteiro e repetir, em uníssono, que o que faz é dar arte de presente para a cidade.
"Fico emocionada ao saber que eles tomam o ônibus para assistir pela janela aos desenhos de seus amigos", comenta, sobre a cultura subterrânea que descobriu, por ironia, ao desistir de Monteverdi. A Beth e a sua turma vale dedicar a máxima de Millôr Fernandes: "A vida é perto". Ela se deu conta disso várias vezes uma delas ao fazer sua assinatura com spray no muro do Colégio Medianeira. Elisabeth é das nossas.