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 | Arte: Felipe Lima/ Fotos: Henry Milleo/Agência de Notícias Gazeta do Povo
| Foto: Arte: Felipe Lima/ Fotos: Henry Milleo/Agência de Notícias Gazeta do Povo

Até pouco tempo, o paranaense Valdemiro Marçal, 52 anos, tinha um problema na hora de preencher fichas em lojas. Não sabia ao certo o que escrever no item "profissão". Trabalhou como agricultor até ficar mocinho, em Barbosa Ferraz, no Norte do Paraná, mas os tempos da roça ficaram na saudade. Depois fez longa carreira como auxiliar de produção, na Electrolux. Fazia "de um tudo", mas deu baixa em carteira, deixando no adeus o ISO 9000 e tantos. De 15 anos para cá virou dono de dois barracões de lixo na Vila das Torres, bairro que adotou assim que chegou do interior, em 1985, liso que nem sabão. "Seria eu um empresário?"

Miro, como é chamado, merece a alcunha, tal e qual os sujeitos de terno que frequentam a Fiep. Emprega 15 pessoas e já se viu arrancando os poucos cabelos que tem ao calcular suas obrigações trabalhistas. Mesmo assim, o termo lhe parece excelso demais. Como separar lixo é seu business, bem poderia colocar na ficha de crediário "classificador", mas teria de explicar aos leigos. Uma lenha.

A outra opção, não menos exótica, seria dizer-se um "entendido em plásticos". É o que Miro é. Deveriam diplomá-lo, com honras acadêmicas, inclusive. Ele consegue explicar a natureza de mais de 20 tipos, qual uma tabela periódica povoada de siglas como PP, PAD, PVC... PET. Como se não bastasse, cita dezenas de variantes de cor e textura... Depois ilustra: a quem interessar possa, descreve a longa viagem cidade adentro feita por uma inocente embalagem de margarina, até virar grão nos possantes fornos industriais. É um pedagogo.

Conheci nosso expert numa dessas peripécias de repórter à paisana, um clássico desde os tempos de são João do Rio. No primeiro semestre, juntei-me a um grupo que foi apresentado à Vila das Torres pelo artista plástico Newton Goto – bamba que fez da região um de seus laboratórios inventivos. Eu me achava um sabichão sobre a vila, até nosso guia nos levar à Rodrigério Comércio de Sucatas Ltda. Me rendi.

Com perdão ao trocadilho infame, é o luxo do lixo. A "Rodrigério" – fusão do nome dos dois filhos de Miro – está instalada num terrenão de mil metros quadrados, plantado num vale fértil entre o que sobrou do Rio Água Verde e uma curva do valente Rio Belém, verdadeiro Rio Bravo dos faroestes que ocorrem naqueles divisas.

Não causa espanto que o ilustrado Newton Goto tenha visto no local um marco da criatividade espontânea. Os imensos lotes de plástico prensados e amarrados no quintal da firma parecem uma instalação, dessas que não fariam feio nas descoladas Documenta de Kassel ou na Bienal de Veneza. Difícil não lembrar do filme Lixo extraordinário, do brasileiro João Jardim et al., sobre o trabalho do fotógrafo Vik Muniz com moradores de Gramacho, um lixão do Rio de Janeiro.

Miro – um sujeito batuta e perfumado– acha um sarro o fascínio que sua empresa provoca nos intelectuais. Quando chegam, sentam numa pilha de garrafas de Cini framboesa para beber da sabedoria do empresário. Suponho que admiram o lixo empilhado como se fosse obra do "novo realismo" da década de 1960 – corrente cujos adeptos, gente alucinada como o francês César ou o suíço Tinguely, faziam "naturezas mortas" usando desovas do mercado de consumo, o que incluía carros e eletrodomésticos.

Essa conversa lhe é estranha, claro. Limita-se a falar de um cara chamado Luís Carlos da Cruz, que ocupa o epicentro dessa história. No início, Miro não se deu muito bem com os recicláveis. Perdia dinheiro. Levava calote. Até conhecer Luís, um veterano no ramo. Não tinha prata, mas sabia do riscado. Contou tudo. Miro logo sacou que tinha de separar categoria por categoria de "P", de modo a facilitar para a recicladora que tem máquina para triturar esse ou aquele tipo plástico. É assim que dá destino a 5 toneladas semanais de sacolinhas de mercado, canos, copos, o diabo.

Miro só se apartou do mestre há dois, três meses, quando da morte do amigo. "Agradeço ao lixo", diz, ao contar como fez a vida às margens do Rio Belém. Meu palpite é que ele dá início a uma tradição. Se em tempos idos havia a "Rua dos Ferreiros", no futuro haverá a "Rua dos Marçais do Plástico". Que tal?

Em tempo, quatro irmãos de Miro são do ramo, fora um dos filhos. O plástico é o ganha-pão dessa gente de nada mole vida. Gostam do produto, pois, mesmo sendo leve para as balanças, vale mais do que pesa. É ciência. É missão. E é beleza. Serviço completo.

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