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José Carlos Fernandes

Sebastião é um homem livre

 | Foto: Albari Rosa / Arte: Felipe Lima / Gazeta do Povo
(Foto: Foto: Albari Rosa / Arte: Felipe Lima / Gazeta do Povo)
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Aconteceu num fim de tarde, em meados de agosto passado. O preso Sebastião Batista dos Santos foi chamado pelas autoridades do Complexo Penitenciário de Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba, seu endereço na ocasião. Entregaram-lhe um alvará de soltura – que o guardasse num saco plástico. O expediente tinha acabado. Estava livre para se mandar.

Não demorou a ouvir o heavy metal da trinca do portão, alto o bastante para entender o recado. Era um homem só, dono de um agasalho roto e sem um "puto" para pegar a condução. Seguiu a pé, 28 quilômetros em linha reta, perdido numa noite suja. Fez sua cama na frente da catedral. Antes de dormir, prestou contas a si mesmo: tinha 77 anos, 40 e tantos passados na cadeia. "Sou um recordista", pensou, antes de apagar a luz.

No dia seguinte, bateu na porta do antigo Socorro aos Necessitados, da Rua Conselheiro Laurindo, 792, albergue da Fundação de Ação Social, onde se tornou uma celebridade instantânea da coluna social da mendicância. Ali ele é o Sebastião das grades, o sujeito que passou mais da metade da vida preso. Não sabe mais o significado da palavra sossego – todos querem ouvir suas memórias do cárcere, tão presentes como uma farpa no dedo. Nessas horas, é um Papillon tagarela. Até que lhe perguntam por que diabos um sujeito manso como o quê pagou tamanho castigo. Fica sem palavras.

O pai de Sebastião laçava cavalo bravo em Três Barras, nos matos do Oeste catarinense. Veio daí o gosto do filho pelo ramo. Rapazote, mudou-se para Curitiba, com emprego acertado no Jóquei Clube do Prado Velho. Dormia nas baias, com os bichos, e não se importava. Dava de comer aos puros-sangues. Escovava os campeões – o Imperador, como esquecer? Até que teve sorte. Como montava bem, chamaram-no para competir. Teve vitórias – uma delas no cangote do cavalo Perón. Seu nome aparecia nas páginas de turfe dos jornais, então mais concorridas que as de futebol. Era "S.B. Santos", o jóquei. Foi bom. Faria tudo outra vez.

De resto, alguém tem uma borracha? Certa feita, desentendeu-se com um "pinta", uma bobagem que lhe sujou as mãos de sangue. Fugiu. Seis meses depois, a polícia o apanhou, dando sopa na Praça Santos Andrade. Era 1963 – o ano em que Lee Oswald estourou os miolos de Kennedy. Tinha 26 anos. Mal podia imaginar que assistiria a algumas das melhores passagens do século 20 qual um daqueles anônimos de Marcelo Masagão. Veio o golpe de 64, a minissaia, os embalos de sábado à noite, Gretchen, Tiririca, o Collor, e Sebastião sempre lá. Entre uma pena e outra, desconte-se cinco anos corridos fora das grades, e algo como oito fugas – "a maioria molezinha, só faltavam mostrar o caminho da porta para a gente..."

Sempre voltava – e isso ele sabe explicar. Tinha descoberto a "emoção do crime", a atração por assaltos, o gosto pelos tragos e cositas más. Até que a chama apagou. Acostumara-se à rotina de pilhas de louça na pia da cozinha das PCEs. Gostava em especial das rodas de conversa entre os beliches, quase sempre uma falação sem eira sobre os feitos de criminosos ilustres. Chico Picadinho, Cara de Cavalo, João Acácio Pereira da Costa – o Bandido da Luz Vermelha... Ao final, todos iam embora – pela frente e pelos fundos –, menos o Tião. Suspeita ter se tornado a mobília dos presídios. "Acho que esqueceram de mim", resume o homem que poderia ter sido um objeto de estudo de Erving Goffman, de Manicômios, prisões e conventos.

Sobrou pouco do jovem "sem destino" que trocou as tardes elegantes do Jóquei Clube pela companhia dos metralhas. Murchou de tanto perder. Uma hora perdeu os pais e irmãos, em outra um amor em Londrina, em outra, ainda, a chance de ter filhos. Perdeu o desejo de fugir. A ambição de fazer dinheiro. Envelheceu. Como consolo, apontavam-no como o "preso das antigas", merecedor de respeito por parte dos meliantes cheirando a leite. "Por que tanto tempo no xilindró?", também lhe perguntavam. Só pobre fica preso no Brasil – dizia, e ele era uma prova da dita.

Sebastião, o liberto, quase não sai do albergue. Não tem para onde ir. Terá direito a uma aposentadoria. Deve ser conduzido a algum condomínio social. De sua parte, espera que lhe ofereçam um emprego – quem sabe de jardineiro. A quem interessar possa, avisa que é homem bom e regenerado. Lê trechos da Bíblia e gosta de telejornal. Ouve música sertaneja – mas baixinho. Não perde um capítulo da novela Império. Um dia montou cavalos – e bem. Faz-lhe bem falar a respeito.

Exercício de solidão

O catarinense Sebastião Batista dos Santos, 77 anos, ficou preso mais de 40 anos. Sua história é comum a outros detentos brasileiros, "esquecidos" nas prisões. Veja fotos feitas por Albari Rosa

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