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José Carlos Fernandes

Brasileirinhos cheios de som e fúria

 | Foto: Brunno Covello/Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Brunno Covello/Arte: Felipe Lima)

E eis que, num surto de "pronto, falei", uma guria levantou a mão e disse o que pensava: "Sabe qual é o problema, esse Dorival Caymmi fala muito de mar, de mulher, de dengo, de comida..." Colheu como resposta uma gargalhada de Milton Karam, o regente. Estava aberta a temporada 2014 do Coral Brasileirinho. Aos fatos.

Neste ano se comemora o centenário de nascimento do compositor baiano. Tempo de cantar Caymmi, no banheiro e na esquina. Vale assobiar. O Brasileirinho não poderia deixar barato. Mas ao ser convocado à farra, alô-alô, ninguém disse palavra: apenas 5% da piazada tinha ouvido falar do sujeito que nos deu Peguei um Ita no Norte. A empolgação foi alguns graus abaixo da sentida diante do próximo Jogos vorazes. O paladar do artista por temperos fortes, associada à câmera lenta com que mira as morenas Rosa, pareciam lerdeza demais para aquela turminha nascida para clicar.

No fim, prevaleceu a moralidade estética. Meses depois de um intensivão de Caymmi, as 27 crianças e adolescentes do Brasileirinho estão entregues ao balanço da rede, à espera de um vatapá – de preferência servido na boca. Só faltam pedir cafuné. Possuídos por Dorival, quase levam às raias da loucura os diretores do grupo, o arquiteto, músico e compositor Milton Karam, 53 anos; e a musicista Helena Bel Carollo, 43 anos, que estão nos nervos, como que tocando repiques numa fanfarra de colégio: daqui a uma semana, começam os shows do grupo, no MON.

Resta-lhes pedir socorro aos deuses da música. Às cenas do ensaio do grupo: Joaquim, que em outras eras integraria fácil-fácil os Canarinhos de Petrópolis, reivindica: "Ô, Milton, não tem lugar para mim no palco..." O guri faz o papel de encabulado chamego de Maria Amélia na deliciosa canção Eu cheguei lá. Bate-se com a tarefa de interpretar. Karam se ajoelha para explicar a cena outra vez para os brasileirinhos, como os chama. O número ganha trilhos.

De repente, um pedacinho do céu – a contraltina Lívia, 10 anos, entra em cena com Eu não tenho onde morar. Bate forte vê-la ali, grãozinho de areia, atirando sua voz afinada pelos dez janelões de madeira do casarão onde funciona o Conservatório de MPB, na Mateus Leme. A gente se sente numa redução jesuítica do século 17, entregue aos mistérios da existência da alma. Bonito.

A apoteose é seguida de aplausos espontâneos. Mas dura um tico. O número encerra com gritinhos, dando início ao que mais parece a hora do recreio de 1,5 mil alunos nutridos pelo mais energizado dos achocolatados – Toddy 5.0. Há quem aproveite o intervalo entre uma canção e outra para brincar de garupa, há quem troque segredos no ouvido das amigas – bem-vindos à Brotolândia. As marcações do chão vão para as cucuias. Mil e Bel, como são chamados pela trupe, passam uma carraspana – peso pena. "Pô, gente..." Riem. No fim dá tudo certo. Tem sido assim nos últimos 21 anos.

Milton nasceu de uma família libanesa que adotou o Brasil sem reservas. Na casa dos Karam, pai e filhos tocavam samba. Com a chegada da sobrinhada – 12 no total –, nosso amigo começou a compor para a petizada. Por essa época, na década de 1980, conheceu o grupo musical O Abominável Sebastião das Neves, dado a performances e do qual fazia parte, vejam só, Helena Bel. Gostou. Inspirado, desenvolveu com Raul Lacerda e, depois, com Simone Cit, o coral infantil O Caracol. O Brasileirinho nasceria em 1993 – fazendo parecer fácil o que é difícil pacas: cantar, dançar e interpretar com a naturalidade de quem brinca na gangorra.

Quem viu e ouviu sabe como é – o grupo faz gregos e baianos caírem de amores. Os grandes costumam deixar dois tipos de depoimento para a dupla Mil & Bel: gostariam de ter cantado num coral assim; e, tivessem um filho, fariam de tudo para que fosse brasileirinho. Muitos vão à fila da audição, todo ano, pedir uma vaga para a prole. São em média 100 candidatos a cada novo teste.

Se entrar é difícil, pior é sair. Por volta dos 14, 15 anos chega a hora de abrir mão da vaga. Chororô. Por sugestão de um pai, criou-se um rito de passagem. O integrante que se despede coloca-se atrás de uma cadeira e pede ao recém-chegado que ali se sente. Pronto. O novato se vê entronizado na Academia Brasileirinho de MPB. Vai ficar no posto por uns tempos, dando oxigênio à obra de Adoniran, Vinícius, Jobim, Guinga e o que mais. Suspeito que ali começam os melhores anos do resto de suas vidas.

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