João Victor Mayer Pimentel Moreira tem um nome longo e aristocrático, mas é um piá como tantos, às turras com os humores da voz, que teima em desafinar. Aos 11 anos, aluno do quinto ano da Escola Municipal Vila Torres – aquela, ao lado do Teatro do Paiol –, ele não esconde para que lhe serve a hora do recreio: mais para jogar bolas de gude que para ver rodar a saia das meninas. Ao fim da tarde, quando se aproxima a hora do sino, é como se fosse abatido pela síndrome da perna inquieta. Conta os minutos que faltam para disparar rumo à vila e jogar uma pelada com os vizinhos. Melhor que isso, só um prato de canjica.
“Sou meio de campo”, informa. Se não é a rigor um craque, também não se alista entre os rebas. Nunca é o primeiro a ser escolhido, mas está longe de ser o último – diga-se da passagem, o maior dos traumas. O reconhecimento da turma do campinho lhe dá alguma esperança. Tanto que, quando algum adulto faz a bocejante pergunta de “o que vai ser quando crescer?”, responde que sim, sonha ser jogador de futebol. “E também poeta.”
“Tem futebol que vale taça, só joga quem tem raça, acho que não é para mim...”
A escolha de João em fazer parte da equipe de Garrincha, Pelé e Zico, mas também da turma de Drummond, Bandeira e Vinícius é uma dessas surpresas do tobogã chamado realidade. O menino não nasceu numa casa com livros, longe disso. Tampouco a música – que para tantos brasileiros é um passaporte para chegar à poesia – faz parte do seu cotidiano. Sem nenhuma paixão, cita que gosta de ouvir Victor e Léo, e para por aí.
Nem João nem Hassimad Raislan – um dos personagens dessa história – sabem dizer quando tudo começou. Hassimad é uma pedagoga líbano-mineira que leciona na Escola Vila Torres. Tem olhos tão grandes que neles cabem um deserto inteiro. Não é formada em Letras, mas nem precisa. O movimento literário em sua sala de quinto ano – apinhada de 40 alunos – desafia, sei lá, um campeão no quesito aqui na paróquia, o Colégio Nossa Senhora Medianeira.
João desconcerta até os corações de pedra com seus desfechos inesperados
João jura que “acordou” para a poesia durante uma animada oficina de rimas promovida por Hassimad. Desse dia em diante começou a anotar num caderninho qual palavra combina com qual. O poeta adormecido espreguiçou. Pouco tempo depois, lá estava ele, entregue às delícias da poesia de Shakespeare, sua preferida. “Pesquisei na internet e achei bonito.”
Hassimad discorda da versão – tem certeza de que João atinou para o ofício muito antes de ela ensinar as manhas do amor e da flor. No seu enredo, o aluno corria para as peladas, mas não sem antes lhe deixar, em vez de uma maçã, uma folha de caderno sobre a mesa. Trazia versos. Versos que qualquer um de nós poderia escrever aos 11 anos de idade. São rimas quase banais, não fosse um detalhe: o autor desconcerta até os corações de pedra com seus desfechos inesperados. A epifania está quase sempre na última linha.
O poema Solidão é o caso. Dá-se de forma previsível, até dizer que a solidão “deixa nossos pensamentos feridos”. E tem A Ilha: “Na ilha não mora ninguém / a ilha é bonita / a ilha é muito chata / mas a ilha é calma a ilha é tranquila / eu queria morar na ilha um dia desses”. Antes que alguém saque o lencinho de papel, vai logo avisando que está muito bem obrigado. “Tenho amigos lá na vila”. A gente acredita, mesmo diante da confissão de que foi para sua vila que escreveu Paz no mundo: “Este mundo violento / a paz no mundo é mais transparente do que o vento / paz no mundo é o que eu desejo / não parece mais um buraco sem fundo / paz é uma coisa legal / o mundo é confuso / o mundo é sem igual”.
Convenhamos, é como se de repente o homem roubasse a voz do menino. E, no caso do novíssimo poeta, permitam dizer, a arte é pura imitação da vida. A família de João é formada por ele, 11 anos; Gabriel, 6 anos; Anthony, 3 anos; Luciane de Passos Maia, 38 anos, a mãe; e pelo cachorro Marley, de idade e raça indefinida. Uma irmã mais velha, de 19 anos, ganhou asas. Os quatro mais Marley moram em três peças escuras numa travessa clandestina da Vila das Torres, daquelas em que os depósitos de lixo se confundem com as moradias. Pagam pouco mais de R$ 300 de aluguel, um acinte para alguém que, como todos, tem direito a um teto que mereça este nome. As instalações são péssimas – a começar pela umidade e a terminar pelas instalações elétricas, cujo interruptor de luz pode detonar um espetáculo de fogos de artifício. Banho, só na canequinha.
Luciane – natural de Rio Branco do Sul – mal se lembra dos pais, de quem cedo se perdeu. Até pouco tempo, apresentava-se como catadora de papel. A informalidade lhe rendeu algumas sovas do Ministério Público, que lhe pedia prumo para ganhar o direito de criar os filhos. Reagiu. Depois de camelar como faxineira no Hospital do Trabalhador, passou para a Universidade Tuiuti. Ali, limpa e guarda os cadáveres usados nas aulas de Anatomia. “Acho que cheguei bem longe, se-você-quer-saber”, diz, referindo-se a alguém criada sem pai nem mãe nem escola nem salário nem afeto.
A descoberta de que o filho escrevia versos foi um ponto fora da curva. Num dos momentos de maior desespero – no peito e nas contas –, chegou em casa e encontrou corações desenhados e poesias penduradas num varal. “Acho que foi a primeira vez que alguém me elogiou.” Para os patrões Luciane conta que o chuveiro não funciona, que a fila da Cohab ultrapassa a do Mar Vermelho, que a coisa tá feia, mas que um de seus piás, “vejam só, faz rima que é uma beleza”. Ele também a ajuda na faxina e a cuidar do frágil Gabriel – “só 10 minutos por dia”, como costumam repetir os dois, em coro.
“Eu salvei o Paraná / eu salvei o mundo / eu salvei um gato de cair num rio fundo. Agora? falta salvar o Amapá” (em O herói).
O calado João dedica seus versos à mãe, mas é a Hassimad que as confia. Para ela escreveu o minimalista “Hassimad é máxima”. Ao desconfiar que o gesto repetido de deitar versos sobre a mesa era um sinal, a professora abriu uma pasta. Ali guarda também os desenhos do guri. Quando folheia o material, pergunta se está virando a Dona Doida da Adélia Prado. “Será exagero meu?” A inquieta diretora Cristina Marques, que já viu céus e infernos à frente da Escola Vila Torres, a tranquiliza com sopros no rosto e doses espetaculares de sinceridade. “Exagero onde, mulher? Põe logo no mural”: “O sol ilumina meu dia / sua luz me traz alegria / dar a luz é a sua mania / sol querido sol, qual é sol idioma? / Português, inglês ou espanhol?”
Faz pouco tempo, João deu de falhar. Sobre a mesa, nada. Até a educadora receber algo que lhe soou como uma mensagem na garrafa, um prenúncio de haicai: “Com saudade dos meus poemas? Não precisa ter mais”. As remessas voltaram, trazendo um misto bipolar de alívio e angústia. Em meio ano, ele termina a primeira fase do ensino fundamental e deve se matricular num colégio estadual. Tomara não seja apenas um número na chamada ou, pior que isso, fora dela. Procura-se alguém que tenha alma para colecionar seus versos. São poesias que nascem com os dias. Com os dias se somam, formando o pequeno livro do menino de nome grande – João Victor Mayer Pimentel Moreira.
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