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 | Foto: Marcelo Elias – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Elias – Arte: Felipe Lima
  • Darcy Rosa na casa onde vive desde criança, na Água Verde: houve discriminação, reconhece, mas de deleita em falar dos tempos de crooner e de goleiro do Britânia
  • A memória dos negros que enfrentaram o preconceito racial em Curitiba fica reduzida aos círculos de interesse. O feriado de 20 de novembro pode ser uma oportunidade para mudar essa cultura
  • O grupo de negros históricos da Água Verde era conhecido pela elegância e pelas ligações com o mundo da cultura. É uma história para ser contada
  • Os negros podem ser poucos numericamente, mas não há como falar de mudança de costumes, religião e vida urbana sem passar pelas comunidades afro da cidade

Se as estatísticas não mentem, 40.978 moradores de Curitiba são negros. Em alguns bairros podem ser contados nos dedos – seriam 25 na Cascatinha e 60 no Seminário. O bairro mais negro de Curitiba é a CIC, com 6.780 negros. Repito aqui esses números a propósito da pergunta que me fez a jornalista Teresa Urban – queria saber se eu não tinha vergonha de morar num lugar em que a Associação Comercial do Paraná, a ACP, contesta na Justiça o feriado municipal do Dia da Consciência Negra.

Por graça, uma pesquisa publicada pela Gazeta do Povo indica que 43,72% da população "concorda" com o feriado. Logo, boa parte dos curitibanos "discorda" da ACP. Há controvérsias, claro – para a associação, somando os desinformados e titubeantes, bem representados na pesquisa, ganha a tese de que 20 de novembro deve ser dia de batente, e s’imbora bater cartão.

Em tese, o debate é econômico. Em tese. Faz mais ou menos um século que essa conversa não sai do banho-maria. Cada vez que esquenta, argumenta-se que se trata de uma questão numérica. Hoje, os negros representam 3% da população da capital. Somando-se os pardos, chega-se a 18%. Pouco para justificar um feriado, diriam alguns.

Mas já são horas de virar o disco. A convivência entre negros, portugueses, polacos e alemães nos campos do Paraná tem ingredientes para óperas, paradas militares, karaokês, abre e fecha de janelinhas do Palácio Avenida. Passa pela grande e pela pequena história. Bobo quem não quer ver.

De minha parte, enxergo todos os dias um capítulo da pequena história dos negros em Curitiba, quase do lado da minha casa. O capítulo se chama Darcy Rosa, o "negro Rosa", 84 anos, um homenzarrão retinto que anda sempre de terno e gravata, óculos Ray-Ban e boné. Numa das mãos, o cigarro. Na outra, um jornal. Seu Rosa não só devora impressos, como faz arquivos com as matérias que lhe interessam.

O pai de Darcy era militar e comprou um terreno na Rua Petit Carneiro [então Rua Engenheiro Rebouças], talvez na década de 1930, quando ali ainda era uma baixada dada a enchentes. Por muitas décadas dava para contar nos dedos as famílias de negros na região – o pequeno quilombo era formado pelo Zaca e suas irmãs, Chiquito, e o Edgar Antunes, o Tatu, que viria a se tornar um dos símbolos da Sociedade Operária. Mais um e outro e só. Chamavam atenção – principalmente pela elegância aristocrática, que Darcy perpetua até para ir à padaria.

É irresistível vê-lo falar dos seus tempos de crooner da Orquestra Guarani, nos anos 1960, quando arrepiava a audiência feminina cantando os sucessos de Noel Rosa e Nelson Gonçalves – "Sentimental eu sou...". E tem sua fase de atleta, avesso da de artista. Darcy jogou basquete, mas também futebol. Era goleiro do Britânia, no qual ficou conhecido pelo pavio curto. Saiu no braço quando um branquelo o chamou de "boca da noite" e "isca de vagalume". Outros tempos. "Terminava o jogo e todo mundo ia beber no bar em volta do campo do Cinco de Maio." Tem mais.

Não fosse o funcionalismo público, quem diria, talvez nosso herói não tivesse vivido todas as paixões da mocidade, resumindo-se à mediocridade das senzalas modernas. Tinha só uns fiozinhos de barba quando ouviu alguém berrar "aí, negão, quer trabalhar?" Era um convite para carregar cimento na Secretaria de Obras Públicas. Poucos anos depois, viu-se promovido a fiscal na construção do Centro Cívico, ao lado de Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra do Paraná.

A quem interessar possa, Rosa avisa que deve tudo às aulas de datilografia e ao ginasial, saberes que o tiraram do serviço braçal. Foi na repartição, aliás, que passou a usar terno, e assim permanece. Impõe respeito. A estabilidade no emprego também lhe garantiu ser o que era, sem pedir licença a ninguém. Exemplos – cresceu e envelheceu na católica Água Verde, mas é filho de Iansã. Sua mulher, Maria de Lourdes, morta em 2007, era de Oxóssi. Foi também personalidade do samba. Nos anos em que a Escola D. Pedro II saía na avenida, seu Darcy era presidente da Comissão de Frente – panca não lhe faltava.

Quanto às estatísticas, a Água Verde tem 566 negros, bem mais que a dúzia de meados do século passado. Talvez mal saibam que vivem no bairro onde o negro Rosa é rei. Culpa nossa. De­pois que ele passa é só admiração, e silêncio, pois assim nos acostumamos a fazer.

Darcy Rosa

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