Tenho cá para mim que a Vila Nossa Senhora da Luz deveria ser tema de filme, com Selton Mello e grande elenco. Fizesse um longa religioso, o diretor contaria a saga do santinho vileiro, frei Miguel Bottacin, morto em 1997. Optasse por ação, faria na vila, facinho, um bangue-bangue das araucárias. Produzisse uma comédia, acharia por lá piadas de zorra total. Só não renderia dramas depois de 43 anos, a primeira Cohab do Paraná anda cansada de guerra.
Dica: sobram locações. Não há conjunto de habitação popular neste país cujas casinhas 2.865 no total tenham sótãos de madeira, feito uma aldeia polaca. Nem há um lugar com tantas praças 12 , divididas por 120 ruas, com dez passos e largura cada. Como nos idos de 60 essa paisagem custou 1 milhão de dólares emprestado dos americanos, nada mais justo do que exibi-la em Hollywood.
Também é moleza encontrar figurantes. Andam pelas esquinas e têm as cores de Almodóvar. Boa parte chegou em 1966, ano em que o presidente Castello Branco cortou a fita e declarou a vila criada. Fosse eu, dava um papel para o Almir Fonseca e outro para o Sebastião Camargo, o "Bastos". A vida deles é como a nossa. A diferença é que há 30 anos, no domingo cedo, os dois orquestram seis times de futebol os peladeiros da Praça 8. E eis que o futebol fez da praça um lugar tão civilizado que merecia ser declarado território da ONU.
O segredo é só um: vigoram no pedaço os ideais republicanos. Cada participante paga R$ 2 para ajudar na compra de redes. E não há folga pra valente. Se um pinta inventa de sair no braço, é chamado a colaborar com a paz mundial. No uso da quadra, idem. Quem espera a vez de jogar pega a bola que vai longe. Rola até costelada 40 quilos a rodada, para ninguém sair falando.
Injusto mesmo só o fato de que a mulher do Bastos, a Maria Rose, lava sozinha todos os jogos de camisas. O marido garante que não se trata de opressão feminina. "Comprei uma máquina que faz tudo. Ela só tem o trabalho de estender no varal." Corta.
A história dos peladeiros começou quando Almir veio visitar seu pai na região, em 1969. Morreu de amores por aquele campão de 800 mil metros quadrados, povoado de casinhas qual iglus. Mandou às favas a carreira na Casas Pernambucanas e virou o "Baixinho da Farmácia", apelido que cultiva como se fosse a Ordem do Cruzeiro do Sul.
Ficou tão famoso no ramo de frascos e comprimidos que deu de sonhar que seria o "João Derosso da vila". Chegou a se candidatar a vereador. Como era da Arena "um palavrão" não ganhou. Mas que nada. Pelo seu estabelecimento perto do Salão da Nevinha e dos Assados do Mirão passou boa parte dos 20 mil moradores da vila. Inclua-se a atriz Isadora Ribeiro, então anônima nos arrabaldes, o craque Liminha do Atlético e Eva Antônia Silveira, a Evinha do Pó, que dispensa apresentações.
"Evinha era freguesa das boas. Nunca pedia fiado", lembra o homem que encontrou uma receita para não se deixar abalar pela redondeza. Mesmo depois de 25 assaltos à farmácia, não julga ninguém. Certa vez, visitou no presídio de Piraquara uns moços encrencados dali. Acabou jogando bola com eles. Gostou. À revelia do crime de cada um, no campo o que contava era o mérito. Tempos depois, nasceria a pelada da Praça 8, uma área de 38 x 18 metros onde reina a igualdade das 9 ao meio-dia, sempre aos domingos.
Fuxico. Almir andou ressabiado. Os veteranos, sessentões e atacantes como ele, bateram os Q-Chutes. Como tem muitas partidas pela frente, mandou-se para a zaga. Santo remédio. Completou 40 anos de vila. O bigode continua aparado. Ainda faz fiado e convida meio mundo para jogar pelada. Eis a cena do filme.