| Foto: Fotografia: Rodolfo Büher/ Arte: Felipe Lima

Num mundo perfeito, ca­­sas e edifícios antigos seriam tão biografados quanto os astros de Hollywood. Suas histórias virariam best sellers debaixo de títulos como A mansão assassinada de Lolô Cornelsen ou Edifício Tijucas, nem às paredes confesso. Leitores bisbilhotariam narrativas nascidas da al­­venaria com a mesma avidez com que buscam detalhes sobre o Rei Roberto em obras não autorizadas.

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Ao folhear o último capítulo da Série Assoalho – versão adaptada da Coleção Vagalume –, mui­­tos saberiam descrever em tintins os azulejos da cozinha em que Estanislau beijou Amália. E nunca mais olhariam para aquela sacada ornada em ferro, nalguma esquina da Rua Riachuelo, sem lembrar o gesto desesperado de uma certa Gioconda.

Inspirado pelo "realismo de cimento" – como os críticos clas­­sificariam o gênero –, o pú­­blico faria turismo predial cidade adentro. Alguns desceriam os velhos elevadores do Edifício Asa, em memória de Otília, a ascensorista. Outros subiriam a João Gualberto para ter com os fantasmas que rondam as mansões da Glória.

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Mas imóveis do passado não vão para o céu. Antes disso, somem debaixo de condomínios de luxo e de infames estacionamentos. Os poucos que se salvam vivem à mercê da bola preta da demolição. A não ser que alguém se mude para lá. Foi o que fez Teresa.

Teresa Gomes de Oliveira é arquiteta. Vez ou outra visitava uma amiga, nas cercanias da Reitoria da UFPR, e ficava na janela, namorando um prediozinho art déco, datado de 1950, plantado na ribanceira da Rua XV de Novembro. Um belo dia, mudou-se para lá. O edifício tem três andares e um jardim com quatro pinheiros. Na fachada, vê-se o relevo prateado de uma deusa da fortuna, com cornucópia em punho. Aos pés da imagem está escrito: "Palacete Gra­­ças a Deus".

Na terra em que edifícios são batizados de Green Water, Mai­­son Paris e Palazzo não-sei-o-quê, o nome do palacete, por si só, faz do lugar merecedor de uma biografia. Mas como biógrafos não brotam das couves, Teresa e os demais condôminos do velho "Graças" têm se virado para descobrir por que diabos aquela invocação divina foi parar lá.

Numa única coisa concordam: quem quer que tenha er­­guido a obra deve ter torrado tanto dinheiro com espelhos e frisos de gesso que achou prudente fazer uma fezinha em Nosso Senhor. E por fim, agradeceu-Lhe.

O que mais intriga a turma, contudo, é a identidade do construtor. Fala-se, a boca-pequena, que o "Graças a Deus" foi erguido por uma comerciante com larga experiência no mercado amoroso, se me entendem. Até que lhe sobreveio o infortúnio. Antes mesmo da festa da cumeeira, um amante surrupiou a grana e subiu a Amintas de Barros para comprar cigarros. Falida, a dama abriu um boteco e deu duro no balcão para reunir os caraminguás que lhe faltavam.

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Só uma dona assim, afinal, juntaria a lânguida cornucópia e o impoluto Criador numa mesma embalagem. "É a melhor versão. Se não for a verdadeira deveria fi­­car sendo", decreta o filósofo da UFPR Paulo Vieira Neto, 47 anos, o Paulinho do terceiro andar.

Loise Gonçalves tem 82 anos e há 50 mora no "Graças" com o marido, Tristão. Ela confirma parte da hipótese do vizinho. "... agora, o passado da mulher que construiu o prédio eu não sei, não..." Se não lhe trai a memória, a heroína se chamava Jovita e tinha uma confeitaria na Praça Tiradentes. E só.

Há quem diga que em vez de ser "da fuzarca", Jovita, Rosita ou Estelita, não importa, foi doméstica e teria ganhado uma bolada na loteria. Enquanto bancava o prédio – que lhe renderia uns aluguéis – caiu de amores por um golpista. Abandonada como um cão, ela teria voltado à faxina, de onde tirou os vinténs necessários para honrar as dívidas.

Gosto dessa versão. Quem tiver outra, que conte. Para mim, Jovita era uma santa. Que ela me dê a graça de desprezar a fortuna e de morrer de amores por um palacete.

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