Em época de eleição, o telefone da casa do aposentado Raul Osmar Dias, 80 anos, toca com a fúria dos desenhos animados. TRIMMM! Do outro lado da linha, algum desconhecido diz alô e lhe pede favores privados na esfera pública. E não adianta dizer que é engano, que "não, não é o senador Osmar Dias", que não são parentes. O rosário de súplicas continua a ser chorado, na esperança de um cargo na repartição, quem sabe.

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Tolos eleitores. A melhor encomenda que deviam fazer ao "quase" homônimo do senador é de que lhes falasse das terras por onde andou. Descobririam que é também um "quase" anônimo, que circulou por umas tantas páginas da história. Acompanhe.

Tudo começou com o avô desse herói, um espanhol errante que adotou o sobrenome "Dias" – para simplificar – e circulou pelo Brasil vendendo sorrisos. Era protético. Talvez Raul tenha herdado do antepassado o gosto pela viagem, arte que praticou sem pudores, desde os tempos do grupo escolar.

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Gurizote criado na Rua João Negrão, Raul tinha fissura por cartografia. De tanto sonhar com chapadas e florestas, passou de observador a desenhista de mapas. Para alegria dos professores, tinha uma habilidade sobrenatural para a régua, o transferidor e o compasso, o que fazia dele uma espécie de Fred Astaire do desenho geométrico.

Deu no que deu. Nem bem tinha saído da fase de jogar bafo com Bala Zequinha e se tornara funcionário do departamento de águas e eletricidade, uma bisavó da Copel. Frisson. Pronto, passaram a requisitar os préstimos do desenhista prodígio no setor que planejava a criação de centenas de cidades no interior do Paraná dos anos 1950.

Foi ali que encontrou um dos muitos ilustres com os quais cruzaria nos próximos capítulos da vida. O nome do homem – Ayrton "Lolô" Cornelsen, engenheiro, arquiteto e um adorável doido varrido, lenda nos três planaltos paranaenses. Se Frank Capra tivesse conhecido Lolô, teria lhe dado o papel que reservou para James Stewart em A felicidade não se compra.

Nem bem tinha saído do Científico, Raul se viu projetando municípios inteiros, que brotariam do chão num Paraná que, até então, só parecia existir nos mapas do colégio. Obedecia Lolô Cornelsen, que rascunhava em que lugar daquelas lonjuras deveria estar a praça da matriz, a avenida, o campo santo. Depois devolvia a papelada para o mestre, que completava os mapas com desenhos de cafezais e arabescos. Ambos viram que tudo era bom.

Se bem lembra, ajudou Lolô a inventar Tapejara, Tamarana, Tamboara, Matelândia e Cianorte. Tinha só 20 anos. E seu trabalho era bem mais divertido do que pegar matinês no Cine Bijou. Fora inclusive à inauguração do Palácio Iguaçu, sempre a dois palmos dos graúdos – Moisés Lupion, Ney Braga, Bento Munhoz da Rocha. Mas em alguns "dias", diria "não" a tudo aquilo. Coisas da vida.

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Raul tinha um minilaboratório de química, com todos aqueles pozinhos explosivos que tanto fascinavam a garotada. Amava a alquimia quase em segredo. Talvez tenha intuído que aquele hobby seria seu passaporte para algo mais do que desenhar cidades. Passaria a morar nelas. Dito e feito. A lista de endereços por onde o engenheiro químico Raul passou mal cabe no mapa: São Lourenço da Mata (PE), Santo Amaro da Purificação (BA), Santos (SP), Joinville (SC)...

Em São Lourenço, pela Fiat Lux, foi um sulista descobrindo o Nordeste. Em Santo Amaro, funcionário da Cia. Brasileira de Chumbo, ficou amigo de seu Zeca e dona Canô. Bem se lembra do casal contando que a filha, Bethânia, fora para o Rio, substituir Nara Leão no Teatro Opinião. Era 1965. No litoral de São Paulo, contratado pela trágica Union Carbide, viu Cubatão virar o foco das guerrilhas ambientais. Em Joinville, pela Cônsul, bolou pistas de skate com caixas de geladeiras. Fez para os filhos, virou febre, matéria de jornal e coisa e tal. As crônicas de Raul são assim – fósforos que se acendem. "Não digo que sou engenheiro, digo que sou engenhoso", resume.

Como se sabe, o Brasil deixou na mão os milhares de profissionais que abraçaram a engenharia química. Raul, um eles, voltou para Curitiba e abriu uma oficina de escapamentos, no Rebouças. Foram 20 anos de serviços prestados ao dióxido de carbono e algum ressentimento, o que se há de fazer.

Hoje, mora no Portão, com a mulher Dyvonne. Redige um livro de memórias – debaixo de insistências. Há poucos anos, fez um curso de letrista por correspondência do Instituto Universal. Andava destreinado. Com o que reaprendeu, escreveu em letra gótica os convites de casamento da filha Patrícia. Fez no capricho, como se desenhasse cidades.

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