Salve, salve Guimarães Rosa. A felicidade a gente acha em horinhas de descuido, como ele dizia, mas em especial quando ao lado do mineiríssimo Geraldo Magela Cardoso, 57 anos, poeta, ativista, operário, protagonista de tantas vidas. Que inveja.
Na carteira de trabalho consta balconista, carteiro, oficial da Aeronáutica, segurança, vendedor de pizza, servidor municipal. Nas artes ator, mágico, artesão de garrafas pet, curador da "Semana de Arte Modesta". É autor de 13 livros, incluindo as coletâneas. Tem projetos culturais a dar com o pé. Dê-lhe um varal e uma folha de papel e pronto.
Na intimidade, solteirão convicto, namorador sem remédio, pai social de três adolescentes para os quais cozinha, lava e passa em casa alugada na Curitiba perdida do bairro Cachoeira. Ativista da causa negra, fez-se também militante do amor romântico e seus vexames. No passado, atirou pétalas às mulheres do alto do Edifício Tijucas; promoveu passeata contra a mercantilização do Dia dos Namorados. Dia desses, na Virada Cultural, deu "uma rosa com amor" para a Vanderléia. Ele é o cara.
A lista de famosos que conhece é o que há. Peça para ver as fotos. Tirou retrato com Pena Branca & Xavantinho; teve plás com Fernando Sabino; Leminski e Lápis foram seus chapas. Mas não se iludam. No fundo, Geraldo é mesmo o parceiro de gente tão anônima quanto ele. "Vive para os outros", sopra uma colega da Sala de Xadrez do TUC no túnel atrás da Catedral, onde hoje trabalha.
É ali que Geraldo atende toda sorte de candidatos à poesia, exercendo, de todas as suas atividades, aquela que mais preza a de editor de livros baratos. Em mais de uma década de ofício calcula ter publicado nada menos que 110 poetas marginais. "No meio dessa gente tem um Ferreira Gullar", desafia, ao desempilhar os exemplares nos quais constam figuras como "Jeca" Kerouac e a Tereza da Latinha.
A lista dos que acolhe é tão sortida quanto a vida. Vai de advogados a moradores de rua, passando por gente com nervos à flor da pele. Em 2013, decidiu arrumar mais sarna para se coçar. Criou o "Cutucando", noite de performance em que os autores de seu cast se apresentam no minúsculo palco do TUC.
Não é raro Geraldo ficar na mão: com medo de que o público não compareça, é comum que os autores desapareçam antes. Acha graça. Foram oito edições até agora e o show deve continuar. "Somos o Bar do Batidão de Curitiba", alardeia, referindo-se ao famoso sarau de poetas populares promovido pela Cooperifa, na Zona Sul de São Paulo.
Eu quis saber de que doença sofre Geraldo, esse sujeito movido a pilhas Duracell. "De obesidade de espírito...", responde. Os sintomas surgiram em 1971, quando desembarcou na capital. Tinha 15 anos. Sofreu mais que joelho de freira. Até sentir a tal da força estranha. Quando se deu conta, estava declamando Tagore numa rádio das Forças Armadas, em plena ditadura militar. Foi o primeiro de muitos dos seus atentados poéticos, incluindo os escatológicos, que são um sarro.
Na década de 1980, por exemplo, imprimiu poesia em rolos e rolos de papel higiênico. Foram 500 exemplares, prontos para o uso, mas a turma tinha receio de ficar com haicais impressos na bunda. Pelo menos é o que contam. Tempos atrás, grudou versos e prosas na parede de banheiros públicos. Vasos viraram tronos.
A sanha de Geraldo Magela começou na minúscula Guaraciama, sertão de Minas Gerais. Seu pai, José Gonçalves, era boiadeiro, categoria "personagem de Sagarana". A mãe, Maria Lisbela, professora rural e pastorinha, categoria "Adélia Prado". Tiveram dez filhos, criaram outros dez, somando 20 nutridos no pão e na poesia.
Deu no que deu. Geraldo é capaz de citar trechos inteiros dos autores que ama um ilustrado. Nem a turma da Sala de Xadrez escapa à verve. O povo chega para jogar, sonhando ser Garry Kasparov, e sai falando de Tolstói, Poe, Machado, Zweig, mestres da palavra e do tabuleiro. E assim segue nosso herói hiperativo que escreve microcontos com as histórias que ouve no ônibus, já de manhã.
Canseira mesmo, só quando encontra o Dalton Trevisan na rua. Ai. São amigos. Como Dalton foge de gente, Magela fica tenso. Tem de virar a cabeça que nem um ventilador desgovernado, temendo que seus inúmeros conhecidos se aproximem e afugentem o Vampiro. Não quer molestá-lo. "Às vezes, preciso me esconder." Essa é boa.
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