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Luís Henrique Pellanda

Cão do meio-dia

 | Benett/
(Foto: Benett/)

Eu caminhava pela Faivre, no sentido dos carros, embora não houvesse carro algum. Vinha de um almoço solitário no Mercado Municipal. Era domingo, meio-dia, hora em que o cão se enrosca, evitando olhar os fantasmas ao redor – palavras de Câmara Cascudo. Dou fé. A cidade vazia, no zênite, é mesmo uma miragem. Só que benfazeja, plácida. Por outro lado, todo encontro, sob tais condições, pode se revelar fantasmagórico. O diabo, hoje, atua às claras, age com o sol a pino. Ninguém toma providências.

Da esquina da Benjamin Constant, avistei alguém cruzando a XV. Duas quadras entre a gente. Era ainda uma miniatura de pedestre; se homem ou mulher, velho ou moço, não dava para adivinhar. Não àquela distância. Só aos poucos, a rua se encurtando, é que a aparição foi adquirindo materialidade, contornos mais confiáveis. Era, sem dúvida, uma senhora apequenada, o que me tranquilizou. Trôpega, os quadris largos, andava devagar. Vestia um agasalho bege. Abraçava uma bolsinha cor de leão. Nos pés, tênis tão brancos que pareciam nunca ter pisado o nosso mundo.

O diabo, hoje, atua às claras, age com o sol a pino. Ninguém toma providências

Calculei que nos encontraríamos na encruzilhada da Marechal. Errei, cheguei bem antes que ela. A senhora mal se movia. Não estava com saúde, mas preservava a vaidade. Boca, zigomas, pálpebras, tudo era um conjunto de borrões azuis, verdes, dourados. Difícil distinguir expressões debaixo daquela máscara, que mais me lembrava uma braçada de flores. Um buquê aquarelado que alguém cultivasse numa gola de blusa.

Sim, era uma estranha criatura de cabeça floriforme. A alegria que tal arranjo preconizava, no entanto, era fruto de uma ilusão cromática banal. As feições daquela senhora eram as de uma morta. Nem triste, nem feio, seu rosto estava temporariamente cancelado. Suas emoções, suspensas. E mesmo sua peruca alourada flutuava, indecisa, um ou dois centímetros acima da testa.

Já a bolsa, ou o que a princípio julguei ser uma bolsa, era um cachorrinho. A senhora o trazia no colo, embrulhado numa fralda. A cabecinha caída para trás, orelhas pensas, olhos fechados. A dentição falha, enegrecida. E a língua de fora, serpentina, incontrolável em sua descida ao pó.

Não, não me perguntem a raça. Só digo que era um cão miúdo e de pouca presença, como de nós, aliás, devem pensar os anjos e os elefantes. Aleonado, peludo, magérrimo, mais se assemelhava a uma estola, ou um cachecol, do que a um ser vivo. Não fosse verão, a senhora bem que poderia enrolá-lo no pescoço.

Hesitei: ofereço ajuda? Tenho esse direito? O cão ainda estará respirando? Ao cruzar com a senhora, portanto, não querendo ofendê-la, apenas lhe desejei um bom dia.

Ela freou, sobressaltada. Levou um indicador aos lábios, pedindo silêncio: o cão dorme, respeite seu sono. Ergui as mãos, a senhora me perdoe, por favor. O bicho não acordou, mas tremeu, rosnou, incomodado. Abriu os olhos um instante, e vi que estavam cegos.

A senhora me lançou uma nova reprimenda e retomou sua marcha. O cachorro, a seu modo, ia na frente, adormecido. Mas cumpria seus deveres mitológicos, abrindo caminho na escuridão meridiana. A dona o seguia. Quem, afinal, não confia em seu velho cão?

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