Em Curitiba, no carnaval, sai às ruas um anjo higienista. Bem-sucedido, quase ninguém o vê. Sua função é manter a cidade semivazia, impoluível, imune aos ventos de mudança. Trata-se, é claro, de um anjo avarento: só ele quer desfilar pelas avenidas, só ele pode flutuar por aí, trazendo às mãos não a espada ou a trombeta, mas uma vassourinha de piaçava, com que abre alas a si próprio.
Quem o viu, e foram poucos, o descreve de forma ambígua. Dizem que parece, sim, uma figura delirante de poder, alguém a ser temido, afinal é um anjo encorpado, só não se sabe de que tríade, ordem ou coro. Destituído de alegria real, apesar do aspecto momesco e da carantonha que ri, até lembra um querubim, embora pesado e envelhecido, um nenê que, ao se agigantar, perdeu o frescor e o futuro. Deve chorar, mas só no escuro de suas velhas fraldas, jamais em público.
Não é uma entidade fajuta. Dizem até que tem asinhas, e que em cada uma de suas penas um olho se entreabre para a luz, como na cauda dos pavões. Em cada olho, porém, se aloja um cisco que o confunde, e todos esses olhinhos, mais de mil, remelentos, veneram somente o anjo que os carrega e corrompe.
O anjo higienista é como aquelas senhoras de antigamente
Voeja, sôfrego; na verdade, saltita. Não se eleva muito ao desfilar, e assim vai varrendo praças e calçadões, esquinas e monumentos, ordenando que se lave e esfregue tudo em sua rota. Só que, uma vez limpas estas veredas de pedra e asfalto, o melhor será mantê-las assim, desinfetadas, desertas, seguras, comportadas. O anjo higienista é como aquelas senhoras de antigamente, que jamais descobriam a mobília adorada, cada móvel um fantasma solitário à espera de visitas que, ainda bem, nunca chegaram. Lá de fora é que vêm as sujeiras, elas sabem, o germe que contaminará o castelo.
É isso, o anjo não quer ninguém bagunçando a casa. Se as ruas foram limpas, que ninguém mais as conspurque, que emporcalhem seus próprios lençóis. Nada supera a pureza de um chão onde ninguém pisa, deita, dança, pira, dorme, acorda vivo.
É por esse nível de assepsia que o anjo se exalta, e percorre o ermo dessas valas, impondo aos foliões que encontra uma mesma máscara ancestral, étnica, de ascetismo e polidez. O silêncio é para todos, a democracia floresce no silêncio, e todos precisam se calar, sem exceção, do filho da escrava ao primogênito do faraó, dos guapecas nos terminais de ônibus aos cabritos cujo sangue tingirá a porta de nossos clubes e salões, e em ponto algum desta aldeia deverá se ouvir o ronco de uma cuíca, o gemido de um zumbi, o protesto de seus encarcerados. Se no Egito houve clamor, em Curitiba haverá, no máximo, borborigmos.
Hoje tudo acaba. É hoje o fim das festas que mais uma vez se frustram. À noite, o anjo estará sujo e exausto, as roupas e unhas imundas, pois mais uma vez esqueceu de se limpar, cego para o desasseio de sua triste presença. Na hora de ir embora, pelos ares, esquecerá inclusive que tem asinhas, obcecado pela mística do cargo que lhe coube, e por isso montará a vassoura que tanto ama. Com o cabo entre as coxas, ascenderá aos céus, não sem alguma dificuldade. Mas, se olharmos para cima, tudo que veremos, contra os relâmpagos, será a silhueta de uma bruxa caricata.
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