Às vezes encontro um senhor, já bem velho, num banco da Travessa Oliveira Bello. Sorte minha ele viver sentado. Se caminhasse, eu me sentiria impelido a segui-lo pelas ruas, o que faria de mim um criminoso menor. Aliás, em sua imobilidade, este velho, mais que um personagem, me lembra um cenário. Uma cena de crime, de atrocidades esquecidas. Difícil explicar. É como se ele ocultasse, dentro de si, um cadáver.
Ele não está apenas sentado sobre o que viveu. Está também vestido para o passado, para as matinês dançantes que buscam preservá-lo: terno xadrez cinza, azul e roxo, camisa amarelada e sapatos lasseados. Se é dia de sol, mantém sobre a calva o chapéu de peninha. Se está nublado, ele o pendura na ponta erguida de um dos pés, as pernas cruzadas de um modo feminino, a concavidade de um joelho encaixada sobre o outro.
Este velho é um mistério de quarto fechado, para usar a boa expressão dos autores policiais
No colo do velho, porém, é que reina o diabo, o detalhe a destacá-lo dos demais desocupados que se abancam à sombra do HSBC: uma dúzia de rosas vermelhas, renovada diariamente. Embrulhado em celofane, o buquê repousa sobre suas coxas feito um gato perfumado, e é assim que ele o acaricia, como a um bicho querido e sonolento, à espera da hora de voltar a caçar, comer e amar, não é para isso que nascemos?
Sim, este velho é um mistério de quarto fechado, para usar a boa expressão dos autores policiais. Há um cadáver dentro dele, chaveado, e essa deve ser a razão do seu silêncio, deste semblante de quem não sabe bem se está esperando a namorada ou um fantasma.
Não, ele não está morto, não é um espectro romântico. Por fora, é ainda um homem. Seus olhos continuam reagindo à luz e à passagem das muitas moças que vêm e vão da Zacarias à Boca Maldita, entrando e saindo, ora alegres, ora deprimidas, das 100 mil confeitarias de lá.
Dessas moças, a única que o comove é a vendedora de paçocas. Alta e loura, muito maquiada, ela lança entre nós a isca de seu tupperware lilás, despertando em todos um desejo súbito de mastigar doces de amendoim. E aí é um festival de mãos masculinas a vasculhar os bolsos atrás de moedas, pretextos e oportunidades.
A vendedora e o velho se entendem na base do escambo. Ele lhe dá uma rosa, ela lhe dá uma paçoca, e os botões no colo do cara vão se abrindo, vejam, o celofane chega a estalar de prazer. Esta negociação, que testemunhei tantas vezes, começou assim: um dia, o velho alegou não poder pagar pelo docinho, no que foi ironizado pela moça, que sempre o flagrava naquele banco, acalentando suas flores frescas e caras.
Em sua defesa, o velho contou, sussurrante, a mão nos lábios, que não era ele o comprador das rosas. Na verdade, era ele quem as recebia – e de quem, não importava. A vendedora adorou a discrição daquele homem triste, e o achou merecedor de suas paçocas.
Assim, o guloso costuma devorá-las com gosto e alguma desordem, os farelos caindo sobre o buquê, as gengivas totalmente nuas. Vem daí, inclusive, o apelido quase maldoso, quase carinhoso, com que o povo premiou a elegância do velhote banguela: Boquinha de Paçoca.
Nas profundezas desse sujeito, jaz um sorriso – e sobrevive um enigma: quem lhe envia tantas rosas?
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