Chega a primavera e o cronista pensa em flores. É delas que devo falar, é isso que esperam de mim, e saio pela Faivre em missão de colheita. Até já sei que sombra visitar, há uma pata-de-vaca na esquina, carregada de flores brancas. Faz dias que as namoro, e espero que hoje falem comigo. Mas não. As flores nada falam de si, ou então, como queria Lewis Carroll, só falam com quem vale a pena. Não sendo nenhuma Alice, desisto. Se não há epifanias nas árvores, é no chão que buscarei meus brotos.
Dou azar, fazer o quê? Só vejo estas florezinhas manjadas. Em geral, dão ao redor dos orelhões, cultivadas por semeadores anônimos, gigolôs do dedo verde. São florações circulares, filipetas a adornar os telefones públicos. Em cada pétala, um corpo humano, um nome de moça e oito números, a senha não para um país, mas um quartinho das maravilhas, nos convocando à digitação imediata.
Hoje foi tudo largado pela rua, a semeadura apressada, e por isso caminhamos sobre um tapete de bundinhas. Digo caminhamos porque não estou só. Três metros à minha frente, dois personagens quietos, mãe e filho, marcham rumo à escolinha.
Se não há epifanias nas árvores, é no chão que buscarei meus brotos
Ela segue farfalhante, a saia leve se enfunando ao vento. É uma garota frondosa, de vinte e tantos anos, o entorno convidativo como o de um flamboyant. Na mão direita, vai a lata de Coca, que ela bebe de canudinho, e na esquerda, dois casacos, o dela e o do menino, encobrindo a pequenez da bolsa.
O filho, tão miúdo, nem sei se independente ou meramente esquecido, se apressa atrás da mãe. Uniforme rasgado no joelho, mochila na garupa, salta buracos e pedras soltas. Obrigado à instrução escolar, só desanuvia o cenho quando detecta, em meio aos dentes-de-leão, uma filipeta em flor. Ali, redonda e solar, uma bunda lhe mostra as faces — figurinha premiada ou raríssimo botão, abrindo-se a novas primaveras?
O menino, agora, é um pontinho de interrogação. Nunca viu nada comparável àquilo, quer dizer, não brotando na grama. Dissimulado, certifica-se do desinteresse materno, as costas da mãe para ele, e se inclina para colher a filipeta, numa afetação romântica, como alguém que, deitado numa gôndola, vai bolinando a água com os dedos moles. Depois aproxima do olhar a foto – já falei que usa óculos? Pois usa, e os tira para entender melhor o que vê, ou o contrário, para embaralhar de vez as fantasias.
Ele olha para a filipeta, a filipeta para ele, ele ri, ela não, e me vem à mente o título de Drummond: “A bunda, que engraçada”.
Mas no meio do caminho há outras bundas, a começar pela da mãe, que, de repente, também parece hilária ao menino. Ele gargalha, e a mãe nem liga, o refri é mais absorvente que o mundo, e o filho vai engrossando seu buquê. Não resiste ao chamado do proibido, ao impulso pueril dos colecionadores, e enche de pétalas a mochila, uma, cinco, dez bundinhas, femininas ou masculinas, quem garante?
O que importa, o menino sabe, é que elas lhe farão companhia mais tarde, em seu quartinho das maravilhas, são a garantia de uma noite feliz, e o matarão de rir sob os lençóis floridos, murmurando, maternais, feito a bunda de Drummond: “Ora, esses garotos, ainda lhes falta muito que estudar”.
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