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Luís Henrique Pellanda

Sinos de vento

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Tudo acaba. O ano, a tarde, o temporal. Mas agradeçam ao horário de verão, ainda temos uma hora de sol antes do anoitecer. Passada a chuva, o povo volta à praia, curtir suas últimas luzes, desfilar seus fogos. Em Guaratuba, cada pessoa é o pavio de um íntimo rojão. Um réveillon ambulante.

No calçadão molhado, vejo um casal de cegos. Ele de sunga, ela de biquíni, quase nus. Jovens e bonitos, jamais um espelho os maculou. Portam bengalas e avançam devagar pela multidão, de braços dados, às vezes virando os rostos à esquerda. Fica por ali, eles sabem, o esconderijo do mar.

São os únicos na Praia Central a abrir mão dos óculos escuros. Também não exibem tatuagens. Ao seu redor, raro é quem não estampe na pele a notícia de um romance, a manchete de certas fantasias, o anúncio de uma dívida eterna. Cada antebraço é um cabide de palavras de ordem: fé, garra, love, freedom.

Entre os moços, a tendência é tatuar no peito, sobre o coração, uma coroa. Representará a nobreza de seus sentimentos? Abordo um guri de boné: ei, qual é a da coroa? E o cara, enfadado por me dizer o óbvio: símbolo de autoridade, tio.

A tatuagem, hoje, tornou-se um convite à leitura das carnes

Sim, a tatuagem, hoje, tornou-se um convite à leitura das carnes. O casal de cegos, porém, não se sente convidado a nada. Apenas passeia sem pressa entre cães, caixas de som, bicicletas, catadores de lata. Nada os distrai de sua excursão à beira-mar, caminhada que se dá, quem sabe, mais dentro deles do que entre nós.

De repente, uma comoção toma a orla e os detém. Uma moça aponta para o céu sobre o Morro do Espia Barco, olhem lá. Um arco-íris perfeito cobre a cidade, pondo Guaratuba sob uma redoma de encantamento.

Olhar, no entanto, não basta. Ao olho humano, limitado, falta uma função essencial: compartilhar. É preciso coletar o arco-íris. Capturá-lo como quem apanha uma borboleta sobrenatural, efêmera, mas ainda assim capaz de multiplicar-se, emaranhada, numa infinidade de redes sociais. Por isso os veranistas sacam seus celulares e fotografam a si mesmos, aureolados pelo arco-íris. São selfies de inspiração hagiográfica.

Os cegos sabem: aquilo não é para eles. Apesar disso, param e apuram os ouvidos. Talvez a graça do arco-íris potencialize a voz dos que o veem. Sigo em frente e os ultrapasso, rumo à Praia do Cristo. Lá, ao pé do morro, não encontro um pote de ouro, mas algo ainda melhor: uma gigantesca loja de modestos suvenires.

Tudo ali é precioso: ampulhetas, porta-incensos, brincos de capim-dourado. Nas prateleiras, milhares de conchas subordinam-se ao mais mundano dos artesanatos. Milhares de moluscos as forjaram a partir do seu sangue, e com elas se enfeitaram, protegendo-se de rochas, ondas, predadores. Agora, porém, estas conchas são nossas. Nós as travestimos de anjos, caravelas, sapos e cisnes, e as cobrimos de tinta e verniz, e sobre elas escrevemos mais enunciados mágicos: amor, saudade, lembrança.

Me demoro entre as quinquilharias de nácar, e acabo reencontrando o casal de cegos. Entram na loja e seguem até um corredor qualquer, cuidando para não esbarrar em nada. Então param, e erguem os rostos para o teto, cada corpo uma antena, captando e retransmitindo, de um para o outro, a música universal dos sinos de vento.

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