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marleth silva

A morte do leitor

Morreu um homem que lia estas crônicas. Ouvi dizer, esperei alguns dias e liguei para a viúva. “Ele tinha o hábito de recortar alguns textos de jornais e revistas e deixar sobre o balcão da cozinha para eu ler”, me disse ela. Daria para reconstruir a personalidade de uma pessoa pelos recortes que ela deixou? Suponho que sim.

Foi bonito aquele compartilhamento de impressões entre marido e mulher. Ele me disse uma vez que ela gostava de romances e, quando uma frase a tocava, lia em voz alta para ele.

O Leitor (combinei com a viúva que usaria este tratamento) descobriu meu número em uma lista telefônica que guardava em casa, daquelas bem grossas e que não se usa mais. Era do tempo em que os números de telefone de Curitiba tinham sete algarismos. Só precisou acrescentar um três na frente e me encontrou. A cada quatro ou cinco meses me procurava para contar que a crônica da semana o lembrara de algum episódio de sua vida. Existíamos um para o outro em apenas uma dimensão: ele como leitor e eu como cronista. Melhor assim, se ele soubesse da minha vida talvez se decepcionasse. Se eu soubesse da vida dele, talvez preferisse evitá-lo. Se soubermos tudo sobre as pessoas com quem cruzamos, ainda teremos vontade de conviver com elas? E se souberem tudo sobre nós...

Se soubermos tudo sobre as pessoas com quem cruzamos, ainda teremos vontade de conviver com elas? E se souberem tudo sobre nós...

O que eu sei sobre ele é que gostava de ler Manuel Bandeira, com quem se deparou em uma padaria, no Rio de Janeiro. O Leitor sabia onde o poeta morava, um edifício na Avenida Beira-Mar, no Centro. No Rio para acompanhar a irmã que havia decidido estudar lá, para horror de toda a família, ele zanzava pela avenida. A irmã passava por provas e entrevistas ali na antiga Universidade do Brasil, exatamente onde o poeta lecionava. Ele matava o tempo observando o movimento dos estudantes, lendo e fumando na padaria. Havia chegado ao Rio zangado com a irmã e suas ideias malucas. Mal lhe dirigia a palavra. No segundo dia estava mais relaxado. Se ficasse uma semana, ele próprio ia acabar se mudando para lá, me contou ao telefone, rindo.

O poeta atravessou a avenida devagar, cabeça baixa. O Leitor o identificou de longe e ficou ali, na porta da padaria, embevecido. Mais embevecido ficou quando o senhor curvado rumou em sua direção. “Me cumprimentou quando passou por mim!” Bandeira comprou dois pães e umas rabanadas. O curitibano tomou coragem e se aproximou dele pensando em puxar conversa: “Senhor Bandeira, posso... posso...”

O “senhor Bandeira” ficou esperando e nada saia da boca do Leitor. Quanto tempo? Na memória guardada, uma eternidade. Temendo a vergonha total, ele respirou fundo e, olhando fixo para as lentes grossas dos óculos do poeta, falou: “Quero dar a volta ao mundo / Só num navio de vela / Quero rever Pernambuco / Quero ver Bagdad e Cusco”.

O poeta sorriu. “Obrigado, jovem.” Desviou o rapaz paralisado a sua frente e foi embora.

“Quase chorei de emoção”, me confessou o Leitor, 55 anos depois do encontro. Nem eram seus versos favoritos, mas foi só o que a memória trouxe naquele momento. Perguntei quais eram os versos favoritos. Ele sabia vários de cor, não só porque lera muitas vezes, mas também porque fizera o exercício de decorá-los. O Leitor decorava poemas.

Histórias como a do encontro com Bandeira em 1960 sempre pontuavam nossas conversas. Achei que fosse um colecionador de fatos pitorescos, que reprisava para os amigos. Pensando bem, concluo que não era isso. Como todos nós, viveu momentos originais em meio à rotina e a banalidade dos dias. Como alguns de nós, identificou a poesia desses momentos e por isso gostava de revivê-los. Tinha poesia na alma, o meu leitor.

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