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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

A seção de obituários da Gazeta do Povo está completando um ano. Boa desculpa para eu voltar a falar dela, que é um desfile de grandes personagens. De onde saem pessoas tão originais? Saem das ruas, dos bairros, de qualquer lugar. Os grandes personagens estão por toda parte. É só ter curiosidade para encontrá-los.

Já comentei aqui a frequência com que familiares e amigos lembram os dotes culinários dos falecidos — cozinhar bem parece um passaporte seguro para um lugar na memória afetiva dos amigos. Mas tem outro que está ficando evidente nas histórias que publicamos: a pessoa tem coragem para fazer alguma maluquice, enfrenta o medo do ridículo, encara o possível deboche dos outros para fazer algo em que acredita ou que lhe dá um grande prazer.

Teve o obituário feito pela repórter Aline Peres de uma senhora que vivia no litoral. Ela circulava pela cidade visitando e ajudando pessoas em uma bicicleta... com rodinhas! Só conseguia usar a bicicleta assim e precisava dela para seus compromissos. Portanto, ia de rodinhas mesmo.

Esta semana publicamos a história do Valentim, que se encantou com Mendoza, comprou um apartamento lá e passou a dividir-se entre Curitiba e a cidade argentina. A filha contou que não foram poucas as pessoas que o desaconselharam a comprar um imóvel na Argentina, a fazer viagens longas, a ficar longe de casa. Mas Valentim gostava de caminhar nos arredores da cidade, comer no restaurante de um amigo, fazer a sesta (costume por lá) e, no fim da tarde, sair para um café no calçadão. Ninguém por aqui entendia a "gastança" tardia de Valentim, essa identificação inesperada de uma pessoa de origem humilde com um país estrangeiro. Foi a única loucura que fez na vida. Pois despertou curiosidade e admiração nos netos. Os adolescentes queriam viajar com Valentim, conversar com Valentim e lhe enviavam e-mails diários, que ele e a mulher liam em uma lan-house de Mendoza.

A história do Sr. Sinval saiu esta semana, escrita pela repórter Adriana Czelusniak. Ele perdeu um cachorro durante uma mudança de São Paulo para Foz. Louco por animais, assim como as filhas que choravam inconformadas o sumiço de Lulu, ele refez o percurso pegando carona com caminhoneiros. Encontrou o cão, que tinha sido adotado por uma família que vivia na beira da rodovia, e o levou de volta para casa. Uma loucura, sem dúvida. E uma lembrança inesquecível para as filhas.

Imagino que pessoas que têm muito medo do ridículo ou preguiça para fazer coisas dispensáveis (tudo que não diz respeito à nossa sobrevivência é, a rigor, dispensável, não é?) não terão essas aventuras ao longo da vida. Estou aprendendo que o grande personagem tem que ter coragem.

Esta coluna também está fazendo um ano e também me deu a chance de conhecer bons personagens e suas histórias. Um deles me ligou dias atrás para contar que havia se identificado em uma foto da Avenida Luiz Xavier (aquele trechinho inicial do calçadão da XV) distribuída como brinde pela Gazeta. Eu não conheço a senhora nem ela me conhece. Mas queria contar para alguém a emoção que sentiu ao descobrir o registro de sua imagem, em 1967, em uma passagem por Curitiba. Cada elemento do retrato trazia uma recordação: o vestido que usava foi o único que ela mesma costurou (sabe dizer até o nome do figurino de onde tirou o modelo), o colar havia sido um presente do marido, o sapato fora comprado pelo pai em Curitiba e levado para ela usar no noivado, lá na cidade do interior onde viviam. Ela seguia a pé para o apartamento da família, onde o filho pequeno a esperava, depois de acompanhar o pai em um almoço de trabalho no Hotel Braz. A leitora quis compartilhar a emoção da viagem ao tempo, feliz e forte ao mesmo tempo, já que os demais personagens daquela lembrança (o pai, o marido e o filho) morreram. Aquele começo de tarde curitibano foi resgatado por uma foto tomada de longe, na qual ela seria apenas um figurante, um transeunte distraído que olhava vitrines. Por acaso, o momento acabou sendo mais que isso. Para ela e para mim, que tive a sorte de ouvir a história de mais um grande personagem.

Marleth Silva é jornalista.

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