Cecília Meireles viajava muito e, na volta, refazia a viagem mentalmente, aos poucos e em segredo. Revia os caminhos através dos detalhes, das delicadezas, dos costumes. Por isso um lugar que Cecília descreve não é o mesmo que outro viajante verá. Foi assim que ela criou a Ilha do Nanja, um lugar bem conhecido de seus leitores, apesar de não estar no mapa. Não está no mapa com este nome, mas existe.
Cecília foi a São Miguel, a maior ilha dos Açores, e encontrou um lugar muito singelo como só uma ilha portuguesa no Atlântico, na década de 1940, poderia ser. Lá, “dançam e cantam nos terreiros e pátios, danças e cantigas de outras épocas sem saberem que aquilo se chama folclore”. É a esse lugar que ela batizará de Ilha do Nanja e que “amanhece toda azul com sol claro e passarinhos no ar; de repente tudo desaparece, uma névoa cinzenta envolve montes e praias”.
Isolados no Atlântico e parte de um império decadente, os Açores eram uma espécie de Galápagos dos costumes
Como costuma acontecer com os lugares que têm para nós ressonâncias sentimentais, a Ilha do Nanja era enfeitada pela fantasia de Cecília. Ela projetou lá as lembranças da infância, que passou na casa da avó açoriana e sendo cuidada pela babá Pedrina, já que era órfã e sem irmãos. O que viu e sonhou convivendo com as duas mulheres foi a fonte de inspiração para muitas das histórias que contaria em suas crônicas e para o clima de fantasia de sua poesia.
Nossa vida é sempre um retorno à infância, lá sempre enxergamos algum momento de doçura e meiguice, mesmo que tenham sido raros. Na infância havia frescor nos nossos olhos e ouvidos, o que dava a tudo um caráter mágico. Cecília descobriu em São Miguel que um pouco da magia que a avó havia lhe proporcionado existia de fato, não era folclore extinto havia gerações. Isolados no Atlântico e parte de um império decadente – o português, que era ele também isolado do mundo, o que o mantinha impenetrável à modernidade –, os Açores eram uma espécie de Galápagos dos costumes.
Pois Cecília pegou esse lugar apartado no tempo e no espaço e o transfigurou em sonho, como contaria na entrevista dada a Pedro Bloch em 1964 e publicada na revista Manchete pouco antes de sua morte. Nos seus poemas ela falava constantemente dessa necessidade de reinventar o mundo:
“Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.”
Descobri Cecília Meireles tardiamente e quem a descobre sempre ancora na Ilha do Nanja. Que lugar é esse? – me perguntei. Existe ou é vizinha de Pasárgada?
Veio a descoberta de que ela falava de São Miguel, o que foi uma coincidência feliz para mim. Me explico. Sou de uma família de Minas Gerais e, ao contrário do que acontece com a maioria dos curitibanos, que conhecem um pouco sua ascendência, nós não conseguimos identificar os caminhos que nos trouxeram aqui. Portugueses, sabíamos, por parte de pai. Mas de onde? Há quanto aportados no Brasil? Então, há pouco tempo, descobri alguns registros sobre meu bisavô Manoel Machado Homem, que foi professor e vereador na cidade de Cachoeira de Minas no fim do século 19. Na biografia deste senhor que há muito me impressiona na velha fotografia, com seus olhos claros e tristes, sua barba longa e gravata de laço, consta que a família era portuguesa, como supúnhamos, e, mais precisamente, que era da ilha de São Miguel, nos Açores. Então, minha única origem identificada – porque há outras que desconhecemos – é aquele lugar imaginário e real ao mesmo tempo, como todos os outros lugares, que chegou até mim através da brasileira que escreveu os versos que emprestei para o título deste texto: “Não ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mão”.
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