Você não é ninguém se sua vida não é um verbete da Wikipedia.
A frase não passava de um gracejo dito durante o jantar por um dos convidados, sujeito metido a esperto e moderno. Daquelas pessoas que fazem declarações iconoclastas, provocadoras ou cínicas para parecerem inteligentes. Se ela voltasse a se sentar à mesma mesa que ele em outra ocasião, descobriria que sempre repetia a gracinha. Pois não é que ela levou a sério a bobagem? “Não sou um verbete da Wikipedia e provavelmente nunca serei” – lamentou-se. O namorado nem entendeu do que ela estava falando.
Claro que qualquer um pode escrever sobre si mesmo na Wikipedia, o que não tem graça. A personagem desta crônica acreditava que os verbetes sobre os famosos de nossos dias aparecem na Wikipedia misteriosamente, provavelmente redigidos por um fã. Ignorava ela o trabalho dos assessores de imprensa.
Ela não tinha fãs nem assessor de imprensa. Fez um teste ao chegar em casa: queria ver quais amigos já estavam lá, na enciclopédia do mundo digital. Encontrou apenas um, palestrante mais ou menos conhecido. Poucas linhas, mal redigidas. Foi um alívio.
Segundo Antonio Callado, as enciclopédias podem ser informativas ou persuasivas
Na geração dos pais dela, ninguém colocava como meta na vida ser um verbete da Enciclopédia Britânica ou da Barsa. Mas agora é diferente. “Você não é ninguém se...”. A declaração pomposa ouvida durante o jantar ressoava em sua cabeça.
Ansiosa por ser alguém, a moçoila sentou-se em frente ao computador. Era chegada a hora de se transformar em verbete. A Wikipedia mesmo ensina como fazer. O escopo dos assuntos tratados é definido como tudo que “contém elementos de enciclopédias generalistas, de enciclopédias especializadas e de almanaques”. Isso inclui biografias e é aí que ela entrava. Registrou lá a vida escolar um tanto tumultuada que incluía três cursos universitários não concluídos, a pouca experiência profissional. Afinal, tão jovem... Viagens? Namoros? É uma enciclopédia, não o Facebook. Empacou. Não tinha mais o que dizer. Para piorar, notou o alerta: as informações devem ter sido “alvo de cobertura significativa por fontes confiáveis previamente publicadas”. Na Wikipedia nada se cria, tudo se copia de outras fontes. Mas ela tem uma página no Facebook, um canal no YouTube que anda meio abandonado, e já foi blogueira! Também muita foto dela rodando a internet. Com isso conseguiu incluir várias referências.
Pronto! Já era um verbete da Wikipedia, já era alguém no mundo digital. É a magia das referências cruzadas: você publica algo aqui e depois cita acolá e assim uma verdade vai se construindo. Quanto ao quesito “fontes confiáveis”, quem melhor que ela para falar de si mesma?
Segundo Antonio Callado, que foi o redator-chefe da Barsa, as enciclopédias podem ser informativas ou persuasivas. O verbete da moça era informativo, mas não muito persuasivo.
Assim construiu-se um verbete enciclopédico, que talvez não dure muito, já que a Wikipedia elimina aqueles que, como ela, carecem de notoriedade. Será um golpe duro para seu ego, mas quem sabe até o momento da dolorosa eliminação ela já terá descoberto algo mais com que se distrair.
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