| Foto: Arte: Felipe Lima

Um amigo me falou do livro muitas vezes e, levando em conta que as sugestões dele são sempre ótimas, eu deveria ter corrido para uma livraria. Mas não corri. Mês passado, passeando pela livraria Martins Fontes, de Santos, me deparei com um exemplar de Minha Vida de Menina, de Helena Morley. O livro é tudo que haviam me dito e muito mais. É uma preciosidade.Há uma história por trás do livro. Em 1942, Alice Dayrell Caldeira Brant usou o pseudônimo de Helena Morley para publicar os diários que escreveu dos 13 aos 15 anos, entre 1893 e 1895, quando vivia em Diamantina (MG). O pai sugeriu que ela contasse ao papel o que normalmente só contaria às amigas. O reconhecimento às qualidades da obra foi imediato, mas gerou desconfianças: será que uma menina de 13 anos conseguiria escrever tão bem?

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Pois pergunto eu: conseguiria um adulto reproduzir tão bem o pensamento de uma menina? Sim, Salinger conseguiu – me dirá alguém. Ele tinha 32 anos quando publicou O Apanhador no Campo de Centeio, que também reproduz o pensamento de um adolescente. Carson McCullers tinha 23 quando publicou O Coração é um Caçador Solitário, outro que segue a mente de uma menina. Mas a julgar pela história de Alice/Helena, não me restam dúvidas que ela realmente publicou os próprios diários, talvez corrigidos, mas não a ponto de perder a frescura do pensamento de alguém de 13 anos.

Os três títulos que citei são livros maravilhosos, o que faz pensar nas particularidades dessa fase. A adolescência é o último – se não o único – período da vida em que o ser humano é natural diante das circunstâncias. Em outras palavras, não está treinado para o mundo adulto. Alguém dá mais bola-fora do que adolescente quando fala, quando administra suas próprias coisas? Eles são curiosos e observadores, mas não são "domados" o suficiente para lidar com a vida social sem escorregões. Por isso ver o mundo pelos olhos do adolescente é uma delícia.

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As observações da menina Helena são dignas de serem anotadas:

"É sina minha todo o mundo que gosta de mim me infernar a vida." (quem não teve vontade de dizer isso em algum momento, sobre a própria família).

"Eu penso que Deus castiga gente educada." (sobre um tio, muito fino, que não consegue nada na pescaria).

(Ao comentar a falta de atenção dos pais com seus estudos em comparação a um tio, que obriga os filhos a estudarem muito.) "Se mamãe fizesse assim eu seria boa aluna como eles são. Mas felizmente ela não se lembra disso."

E há a perplexidade diante das crenças religiosas que a cercam. Crente em Deus, ela não entende que uma pessoa boa vá para o inferno porque não seguiu uma determinada prática religiosa. O avô, por exemplo, médico inglês que era protestante e por isso não pode ser enterrado no cemitério de Diamantina (católico).

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Há algo no relato de Alice/Helena que se parece com um olhar estrangeiro sobre o Brasil. Em parte porque a pouca idade e a inteligência peculiar dão a ela um ponto de vista original e, em parte – estou convencida – porque a família de seu pai era inglesa. Daí que Helena tenha acesso a um ambiente relativamente culto, apesar de sua família ter renda baixa. Certamente, não era assim na maioria das famílias pobres do Brasil do século 19, assim como ainda não é no Brasil do século 21. Ela também não está mergulhada apenas nas verdades e crenças da sua família brasileira (católica e escravagista) porque convive com o pai e com as tias, filhos de ingleses, que são protestantes e não conseguem ver os negros como escravos. Aliás, estou deixando de mencionar outra qualidade do livro de Alice/Helena. É um retrato saboroso da vida doméstica e social brasileira no início da República, quando muitos ex-escravos ainda viviam com as famílias brancas e eram tratados como se fossem uma mistura de parente incômodo com animal de estimação.

Não se assuste o leitor com o fato de que minha heroína viveu suas aventuras no século 19. O que é bom sobrevive. As qualidades do livro impressionaram Dalton Trevisan que, em 1983, elogiou o Diário em uma carta a Otto Lara Resende. A carta está no livro Desgracida e, se o autor decidiu publicá-la agora, deve ser porque não mudou de ideia. Aliás, neste caso, é uma carta deliciosa falando de um diário tão delicioso quanto.