| Foto: Felipe Lima

Tenho má vontade com adjetivos criados a partir do nome de um escritor. Muitos filmes esdrúxulos e livros confusos foram chamados de "kafkianos" por terem algo em comum com a obra de Franz Kafka, mesmo que fosse apenas a aparição de uma barata em uma ceninha sem importância. Toda peça de teatro em que há uma família com problemas é logo classificada de "rodriguiana" em referência aos dramas domésticos criados por Nelson Rodrigues. Por causa dos exageros, durante muito tempo achei que fosse devido a uma bobagem qualquer que apelidaram um conjunto de perguntas de Questionário Proustiano. Perguntas do tipo que se lia naqueles antigos cadernos de meninas: qual sua cor favorita? Qual seu maior sonho? Não foi Proust que inventou o questionário, mas foram as respostas dele que tornaram a brincadeira conhecida mundo afora. Agora todos nós podemos dar uma de Proust e responder o questionário em francês, português, inglês ou qualquer língua que você domine. A internet está repleta de Questionários Proustianos a serem copiados e respondidos.

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Entre a elite culta e sofisticada da França do fim do século 19, era costume responder ao tal questionário durante soirées festivas. O caderno circulava entre os convidados, gerando assunto para algumas conversas. Era esse o objetivo: animar conversas de salão. Uma mocinha chamada Antoinette Felix-Faure fez isso na sua festa de aniversário; o adolescente Marcel, de 13 anos, era um dos convidados. (Em 2003, o caderno de Antoinette foi leiloado por US$ 100 mil).

Proust gostou da brincadeira. Tornou a responder ao questionário aos 20 anos e parece que teria voltado a ele ao longo da vida por prazer ou como forma de autoconhecimento. Há quem diga que o questionário serve para isso: uma espécie de autoanálise. Claro que para funcionar, tem que ser sincero. E para ser sincero, tem que ser secreto. Afinal, para quem você responderia com toda honestidade a seguinte pergunta: "Qual o seu pior defeito?". Se a resposta for sincera mesmo, não vamos querer que muita gente leia, não é? "Sou invejoso" ou "gosto de fazer fofoca" — esse tipo de autocrítica é tão raro que não dá nem para imaginar alguém escrevendo isso em um papel que será lido por outros.

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Na versão jornalística do questionário, que é publicada por várias revistas mundo afora, uma resposta comum para este item é: "Meu pior defeito é o perfeccionismo". Proust não engoliria esta asneira nem aos 13 anos de idade. O leitor quer saber o que ele respondeu? Lá vai: "Não saber; falta de motivação. Da falta de motivação ele deve ter se livrado logo, já que alguns anos depois escreveria Em Busca do Tempo Perdido. E também deve ter "sabido" muitas coisas, caso contrário não teria o que dizer em sete volumes de uma obra que vasculha a alma humana.

Claro que quanto mais sincera, mais interessante será a resposta. Ao responder ao questionário para a revista Vanity Fair, Umberto Eco diz que não gosta de nada em sua aparência física, mas relativiza: "Não me incomodo com isso porque percebi que algumas pessoas bacanas têm uma opinião diferente sobre mim". O espelho não é generoso com Eco, mas os amigos são. Na mesma revista, Catherine Deneuve, que é sinônimo de mulher bonita, se saiu com essa: "Uma qualidade que as pessoas valorizam excessivamente: beleza."

Eu adoro esta resposta de Proust: "O que seria um grande sofrimento para você? Ser separado de mamãe." Sincero como só um menino de 13 anos sabe ser.

Marleth Silva é jornalista.

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