Roth extrai força emocional de drama ambientado entre os anos 1940 e 1970| Foto: Divulgação

Órfão de mãe, com um pai ladrão que o abandonou, criado por avós pobres, recusado pelo exército, um jovem professor de educação física se fez um homem íntegro, um herói para os meninos que ele treinava. Corpo musculoso, caráter inflexível, esportista exemplar, ele conquista o amor de uma bela moça, pertencente a uma família respeitada da Newark dos anos 1940. Tudo está preparado para uma grande felicidade, mas recai sobre ele a ira da deusa da vingança, que castiga aqueles que se elevam demais, pondo em risco a ordem do mundo. Eis aí o novo romance de Philip Roth, Nêmesis (Companhia das Letras, 2011), que pode ser colocado entre as suas melhores obras pela força emocional que consegue tirar de um drama íntimo e ancestral.

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O principal recurso de Roth é a ironia, aqui explorada com um sentido trágico. Impossibilitado de ir para a guerra, por uma deficiência visual, Bucky Cantor acaba trabalhando como professor em um pátio de atividades físicas de sua cidade, promovendo a saúde das crianças. Mas, como a guerra estava em todos os lugares, o conflito chega até ele por meio de uma epidemia de poliomielite, que atinge a sua cidade e principalmente o seu bairro. Cantor assume o papel de combatente, luta para manter a ordem no pátio, vendo os seus alunos ficarem subitamente aleijados ou mesmo morrerem. Era inicialmente um herói: "Seu jeito confiante e decidido, sua força de halterofilista, sua participação cotidiana e entusiástica em nossas partidas de beisebol – tudo isso havia causado admiração na turma" (p.20). Mas logo começa a ser acusado de responsável pela doença que se espalha. Instala-se um clima de histeria, com acusações a todos, pesando sobre ele a origem judaica.

Neste mesmo momento, recebe convite para trabalhar com a namorada na colônia de férias onde ela se encontra, lugar livre de pólio. Seu senso se responsabilidade não permite que ele abandone o front; quer ficar ali, mesmo se sentindo impotente. Mas o amor de Márcia e a experiência de alegria produzida pela sua presença quase angelical o levam a renunciar ao trabalho antigo e seguir para aquela região protegida.

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Humilhado, ele chega às montanhas junto com a doença. Vários são infectados, e ele se descobre com pólio. A devastação é total. Até a irmã de Marcia, também na colônia, é atingida. E sua condição de judeu, que o atormenta, pois a sociedade projeta uma repulsa nele, faz com que se veja como vetor da contaminação. Sente-se responsável por tudo. Depois de se recuperar (ficando com sequelas: perna e braço secos), ele se afasta das pessoas, recusando até o amor de Marcia, para viver obscuramente.

É neste epílogo que descobrimos quem narra a história – um dos meninos do pátio que fora atingido pela doença e que conseguiu ter uma família e se fazer empresário de sucesso. Os dois conversam, nos anos 1970, sobre aqueles tempos. O ex-aluno ainda idolatra Cantor, e tenta inocentá-lo. Mas é impossível. Mais do que apenas uma culpa pessoal, ele se liga à tragédia de exclusão sofrida pelos judeus, atormentados pela culpa ancestral que sempre lhes é imposta.

O romance termina com a memória de um episódio mágico em que Cantor lançara o dardo no pátio de exercícios. Era um deus olímpico naquele momento. O contraste com o corpo agora deformado e a alma ressequida é terrível. E esta última cena, vinda da lembrança longínqua, é mais uma ironia. Pois Cantor, negando o Deus de sua religião, se sente um espírito do mau que espalha a doença, flechando as pessoas.

Serviço:Nêmesis, de Philip Roth. Tradução de Jorio Dauster. Companhia das Letras, 194 págs. Romance. Preço médio: R$ 30.

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