Do ponto de vista do estilo e da concepção de mundo, o romance O Drama da Fazenda Fortaleza (1941), do historiador paranaense Davi Carneiro [também grafado como David] (1904-1990) pertence ao romantismo tardio. Se não bastassem a linguagem convencional e as descrições das grandezas da nossa terra para provar esta filiação, ela poderia ser percebida nas inúmeras citações de autores românticos, com recorrência maior do português Alexandre Herculano (1810-1877).
Tal desatualização não é, no entanto, um problema individualizado. O Paraná ainda não entrara na modernidade, apesar de algumas erupções modernistas mais para efeitos de escândalo social. Só começaríamos a pertencer ao tempo presente com a geração da revista Joaquim (1946-1948), responsável pela reinvenção da arte local. Até então, o estado como um todo era bastante antiquado.
Com isso, não se tenta amenizar as limitações deste folhetim de Davi Carneiro, e sim situá-lo. Apesar do ranço romântico, adequado à história que se quer narrar, é um dos livros locais mais importantes, e causa espanto o fato de nunca ter sido reeditado.
É verdade que o autor não tinha, pelo que confessa na introdução, a pretensão de ser romancista. Traduzindo os relatos de Saint Hilaire (Viagem ao Interior do Brasil, em 1820), ele descobre o caso do tenente-coronel José Félix da Silva, temido e opulento proprietário rural, dono da fazenda mais afundada no sertão paranaense, o que o obrigava a viver em contínuo conflito com os índios. Misto de fazenda e posto militar, a sede da Fortaleza era cercada por muros e seus escravos e funcionários faziam as vezes de soldados. A importância de José Félix para a colonização da região de Tibagi é muito grande, principalmente por ter afastado os índios, permitindo a ocupação territorial. Mas não é esse seu lado bandeirante que sobressai no romance e sim um dilema doméstico. A Fortaleza não funcionava como uma construção erguida apenas para defender os moradores dos índios e dos aventureiros, mas também como prisão.
Casado com uma moça pobre e de gênio violento, o tenente-coronel, acostumado aos combates, entra em atrito feroz com a esposa. Onistarda, eis o seu nome, tenta por isso matar o marido com a ajuda de alguns empregados. José Félix resiste, perde parte de uma mão, recebendo outros ferimentos, mas escapa da emboscada e move um processo contra a esposa, rapidamente condenada à prisão.
Para tê-la ao seu dispor, o marido usa sua influência política, retirando-a dos domínios do poder público, e a faz prisioneira na própria fazenda. Por muitos anos, até a morte do algoz, ela fica trancafiada num quarto com grades.
O professor Davi Carneiro oferecera esta história ao escritor Paulo Setúbal. Este logo morre, retornando ao historiador a tarefa de romanceá-la. Não sendo um ficcionista, Davi Carneiro escreve uma narrativa compartimentada. Maneja seu conhecimento histórico para representar os Campos Gerais nos anos de 1820, indicando com notas as passagens factuais e transcrevendo documentos da época, num nítido esforço pedagógico. Paralelamente, recolhe as lendas sobre o caso, imaginando uma história de ódios levados ao extremo. O romance é narrado a partir da figura do padre Antonio Pompeu, da então vila de Castro, que recolhe as duas versões, observa os comportamentos, e não toma partido, apesar da visão preconceituosa da mulher própria da época e da sua formação.
Se a intenção do autor, como me confessou em uma conversa em 1989, era usar a ficção para dar a conhecer a História do Paraná, hoje o que mais chama a atenção no livro é a força simbólica da eterna guerra conjugal.
Serviço: O Drama da Fazenda Fortaleza, de Davi Carneiro. Edição do Dr. Dicesar Plaisant, com ilustrações de Teodoro de Bona (1941). Esgotado.
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