Luisa Geisler: estrangeirismos aliados a regionalismos| Foto: Andressa Andrade / Divulgação

Embora o título do livro de estreia de Luisa Geisler soe como um pleonasmo – Contos de Mentira –, ele tem um forte sentido estrutural. A jovem escritora gaúcha (nascida em 1991) pertence a uma geração que frequenta oficinas literárias – foi aluna do ficcionista Luiz Antonio de Assis Brasil – e teria tudo para escrever histórias sobre as suas vivências juvenis. Felizmente, isso não acontece, tirando de seu livro qualquer queda para as confissões públicas.

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Seus contos são construções ficcionais. Mais do que isso, são construções de linguagem. Na maioria deles, a voz narrativa se afasta da autora para experimentar-se em outras latitudes de identidade. Seus protagonistas podem ser moças iguais a ela, mas são também rapazes, mulheres e homens casados. Esta maneira de narrar denuncia uma escritora que consegue sair de seu eu para olhar o mundo do lugar do outro. Este é o exercício ficcional por excelência, algo que vem sendo negligenciado por uma literatura que se contenta em ficar presa ao próprio umbigo.

Nesse sentido, o título é uma declaração de princípios: os seus contos não querem ser de verdade, ou seja, vividos em uma primeira pessoa que se confunde com a própria autora. As suas primeiras pessoas são imaginárias.

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Do ponto de vista da linguagem e da estrutura, há um movimento em sentido similar. Mesmo se valendo de expressões próprias de sua geração, com um uso acentuado de termos estrangeiros, principalmente de inglês, não se percebe um naturalismo de expressão – outra constante na literatura egótica em moda. Luisa Geisler constrói deliberadamente os seus contos, e este senso arquitetônico permite uma variação de recursos. Sua narrativa mais elaborada, talvez a mais densa do livro, "Apenas Este Réquiem para Tantas Memórias", revela um tratamento de linguagem mais próximo da poesia do que da ficção. Um rapaz pula de um aeroporto a outro na Europa, convivendo superficialmente com a língua do país do momento; quanto mais rápido ele se desloca mais ele perde o contato com o real. A viagem clássica tinha um sentido de revelar o outro, mas esta viagem do Ulisses turístico é apenas um apagamento do eu. Num tempo em que a obsolescência dos objetos nos livrou de maiores vínculos com o mundo, este jovem tenta se fixar em algo feito para durar – ele compra uma lente fotográfica, lembrando que as lentes, ao contrário das máquinas, não são tão descartáveis. Apesar deste esforço de ancoragem, a viagem pelos aeroportos opera a perda de si mesmo. É interessante notar que, paralelamente ao cosmopolitismo da narrativa, há um uso regional do tu, próprio do Rio Grande do Sul: "The thing about airport is. Tu acaba esquecendo onde tu tá. Por isso o piloto avisa onde. aterrissa. [sic] Pra ele mesmo" (p.14). Este choque entre o cosmopolitismo e o provincianismo vai se manifestar em outros contos, mostrando com isso a ausência de fronteiras entre estes dois espaços de ser. O final do conto só podia levar a um estado de completa amnésia, em que o rapaz se desfaz de seus referenciais, tornando-se um estrangeiro.

Os recursos usados neste conto não se manifestam em outros, numa variação de códigos de acordo com as necessidades narrativas. Há, no entanto, uma constante nelas: os narradores não compreendem tudo, são movidos por dúvidas e por uma descoberta da incompletude da vida, expressa sempre com uma poesia dolorosa em histórias com finais abertos. Ao conseguir nos comover com dramas cotidianos e ao mesmo tempo profundos, Luisa Geisler dá mais uma prova de que o leitor não está diante de uma jovem que escreve, mas de uma escritora de verdade, que sabe tirar todas as notas emocionais de pequenos acontecimentos.

Serviço

Contos de Mentira, de Luisa Geisler. Record, 128 págs. R$ 25. Contos.

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