José, obra que fica a meio caminho entre a ficção e as memórias| Foto: Reprodução

Em Paris É uma Festa (1964), Ernest Hemingway desiste de ser fiel aos fatos e transfere ao leitor a decisão de ler o texto como memória ou não: "Se o leitor preferir, considere este volume como um trabalho de ficção", diz ele no prefácio. Este mesmo processo de leitura ambivalente deve ser aplicado a José, de Rubem Fonseca, obra escrita numa falsa terceira pessoa: gramaticalmente, quem fala é um ele (José), mas ouve-se o tempo todo a voz do eu biográfico. Apresentado como ficção, este volume não chega a ser nem novela nem memórias. Como José Rubem Fonseca sempre omitiu na capa de seus livros o primeiro nome, assinando-os apenas como Rubem Fonseca, ele agora restaura a parte faltante na promessa de mostrar o homem por trás do autor.

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O volume é curto, traz lacunas imensas, oscila entre um tempo e outro, faz comentários quase escolares sobre fatos históricos, antes falseando a vida pessoal do autor do que a revelando. Nesse sentido, é ficção, conquanto não disponha de uma estrutura ficcional. Podemos ler José como um pequeno volume de crônicas (algumas já publicadas em seu site), gênero que admite a ambiguidade entre o vivido e o inventado.

É da crônica a tendência nostálgica, tão estranha numa obra contemporânea como a de Ru­­bem Fonseca. Em vários trechos, o autor lembra o passado como uma época de ouro, como ao falar do Baile do Cabide, orgia bem comportada de magistrados, em que todos deixavam suas roupas ao entrar no salão e "não se co­­nhecia a história de uma simples gravata ter desaparecido" (p.97). Esta "integridade" caracterizaria o menino José, que trabalha desde cedo para ajudar a família, aprende a ler sozinho, tanto em português como em inglês, defende um homossexual na escola, faz amor carinhoso com uma moça envergonhada de ter um defeito na perna, acha a mãe "a melhor cozinheira do mundo" (p.113), advoga gratuitamente para os pobres e se revolta ao descobrir que uma de suas namoradas era casada: "Ele não podia amar uma mulher que enganava o marido" (p.150). Tais episódios causam constrangimento no leitor afeito à obra corrosiva de Rubem Fonseca.

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O valor do livro se encontra em algumas revelações determinantes para a construção do grande escritor que ele se tornou. A primeira delas é ele ter vivido nos espaços imaginários (Paris e América do Norte) sem perder o seu vínculo com o centro do Rio de Janeiro. Este amor urbano está em quase todas as páginas: "A maior de todas as criações do ser humano é a cidade" (p.47). Outra revelação útil para compreender uma obra com tendência escatológica é a vocação de Fonseca para a Medicina. Ele acabou fazendo Direito porque necessitava trabalhar, mas foi nas aulas de Medicina Legal que formou uma sensibilidade para o fisiológico.

Ele também propõe as condições necessárias para alguém ser escritor. A principal delas seria a motivação. As demais: a paciência, a imaginação e a coragem de dizer o que ninguém quer ouvir. A motivação do autor é um desejo pelas mulheres e pela vida, como fica claro em José. A paciência se manifesta no fato de o autor ter esperado 20 anos, depois que o seu primeiro livro se perdeu, para escrever o próximo. A imaginação: mesmo sentindo o apelo da realidade, ele soube alimentar-se dos livros ("A melhor inspiração do escritor é sempre encontrada nos livros", p. 50). A coragem: optou por uma ficção feroz, sem se preocupar com as contrariedades que despertaria.

Se estes atributos abundam em seus livros, eles não distinguem José. Rubem Fonseca não se convence de que deve escrever as suas memórias e interrompe abruptamente o relato quando tem que tratar de assuntos mais espinhosos. Prefere permanecer na infância e na juventude, tentando mostrar-se como um moço exemplar.

Serviço:

José, de Rubem Fonseca. Nova Fronteira: 2011, 168 págs. Preço médio: R$ 34,90. Ficção.

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