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Aconteceu com ela o que os pais temiam. Não estava na idade, apesar de seus 14 anos. Mas quando é a idade certa? Para ele, a coisa se deu bem depois, em circunstâncias piores, com a necessidade de ocultar da família. Então, não teria nenhuma postura crítica com a filha. Ela tinha se iniciado dentro das perspectivas do mundo em que vivia. Depois destas reflexões, eles resolveram comemorar, embora muita gente possa tomar isso como um absurdo.

O pai achou apropriado que fosse nas férias, período em que ele também passou uns dias em casa. É sempre bom estar por perto nessas horas. A mãe, mais compreensiva, exultou desde os primeiros momentos, embora temesse a reação do marido. Este sempre se orgulhou de seus princípios. Acreditava em coisas um tanto fora de moda. Bem, ele ia usar a palavra démodé, mas ficou com vergonha desta palavra tão... démodé. Nós nos traímos mais pelas palavras do que pela combinação de roupas, ele pensou. Instintivamente, vamos cedendo às novas tendências da moda, aprendemos a usar os recursos do celular, ousamos mexer na internet, passando assim por pessoas contemporâneas. Mas algumas palavrinhas surgem lá do fundo da memória e denunciam os dinossauros.

A primeira vez que aconteceu com a filha, por conta dos valores do pai, teve que ser em segredo. Ele notou apenas que ela, tão afoita para sair com as amigas, trancou-se o tempo todo no quarto. No primeiro dia, isso não despertou nenhuma curiosidade. A adolescência tem dessas alternâncias de humor que fazem com que os jovens de repente se isolem. Poderia ser também um período de diálogo pelo messenger com as amigas – uma fora para o Havaí; outra, para a Patagônia. Ou seria um boicote contra os pais, que não puderam viajar nestas férias de inverno?

No segundo dia, quando viu a filha trancada no quarto, intuiu problemas. O que estaria acontecendo?

Procurou a mãe.

– Você tem que aceitar certas coisas.

– Como assim? – ele estava prestes a explodir.

– Nem tudo pode sair como você quer. Deixe que a vida dela tenha o ritmo de hoje. Que faça as descobertas por conta própria.

Ele então correu para o quarto da filha, furioso. Abriu a porta estupidamente e a flagrou na cama.

Estava lá, deitada, as cortinas fechadas, a luminária acesa, cobertas sobre o corpo, pois fazia muito frio, e o maldito livro na mão. Havia dois dias sua filha lia Crepúsculo, de Stephenie Meyer. Ela o olhou com os olhos mais doces, molhados de amor, e disse:

– Termino hoje à tarde, pai.

– Está gostando? – ele perguntou, desarmado.

– O melhor livro da minha vida.

Ele beijou a filha, fechou a porta e se sentou na sala para olhar os jornais. Ela tinha lido uns poucos livros, a maioria por indicação da escola. Mas estava ali, sozinha, descobrindo um mundo novo. Foi assim que aconteceu também com ele. Do nada, leu um livro que o marcou, e não pôde parar mais. Era um livro importante da literatura nacional. Mas o que era um livro importante hoje? Ficou perdido nestes pensamentos, olhando as notícias de mais um escândalo em Brasília.

– No que está pensando? – a mulher quis saber.

– Na minha Declaração de Imposto de Renda – ele falou, sério.

A mulher soltou uma gargalhada. O marido nunca pensava nesses assuntos. E nem era época de Declaração. Já tinham feito a do ano anterior, e pagavam parcelas mensais, cujo valor ele sequer sabia.

Ele olhou para a mulher com a sua melhor cara de palerma. E sorriu.

– Quem sabe ela não se torna também uma grande leitora. Sei que você sempre esperou isso. Talvez seja o começo – a mulher disse.

– O best seller é sempre o fim da linha. Ninguém vai além.

Na hora do jantar, a filha contou a história do romance com grande entusiasmo. Depois, ligou para a amiga que lhe emprestara o livro, e combinaram ver o filme baseado naquela obra.

Na tarde seguinte, ao retornar do cinema do shopping, ela trazia o novo volume da série, Lua Nova.

– O livro é sempre melhor do que o filme, né, pai?

– Não gostou do filme?

– Falta intensidade. A gente não vive a história da mesma maneira.

E foi direto ao quarto. Ficou lendo até tarde, desinteressada da tevê, das amigas, do computador.

Em três dias, terminou o novo tijolaço. E pediu o outro: Eclipse. Foi o pai quem a levou à livraria onde ele compra os seus livros e, meio envergonhado, saiu de lá com o best seller. Dois dias depois, tendo varado as noites naquela febre, ela concluía o novo volume. O pai então comprou Amanhecer. Mais alguns dias e ela já terminava a nova leitura. Em menos de duas semanas, sem sair de casa, a filha devorou 1.802 páginas (foi ela quem contou) da série de Stephenie Meyer. Esta senhora formada em literatura inglesa fez o que nenhuma escola conseguiria fazer: deu à jovem a segurança para ler por um longo tempo monstros terríveis de 500 páginas. Ela saiu com sua auto-estima fortalecida, sabendo que a solidão tem o seu sabor e que é possível, sim, tirar alguma alegria da palavra escrita.

O pai ficou pensando que talvez a crise de leitura de que tanto se fala seja mais uma crise da literatura contemporânea. Perdeu-se o dom de falar aos leitores comuns. Ninguém atrapalha mais a leitura do que os autores exageradamente sérios de hoje.

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