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A chinesa Yuyin Li é uma das melhores escritoras da atualidade | Divulgação
A chinesa Yuyin Li é uma das melhores escritoras da atualidade| Foto: Divulgação

Adotar uma língua transforma você em outra pessoa – diz a filha chinesa, radicada nos Estados Unidos, ao pai que a visita, no conto que dá título à primorosa coletânea Tempo de Boas Preces, de Yuyin Li, uma das melhores escritoras da atualidade. Este relato, parábola sobre a língua e os sentimentos, amarra todo o volume.

A filha se casa, muda-se para os Estados Unidos e, depois de 7 anos, se separa. O pai, velho e desamparado, revolve ajudá-la a reconstruir a vida. Cientista de foguetes aposentado e mal pago, ele passa a amar o novo país, onde as pessoas ganham bons salários. Mas não consegue compreender a filha, pois ela se isolou em sua nova identidade. No passado, era ele o foco de silêncio da casa, pretensamente para proteger os segredos de sua profissão. Agora, é a filha quem se cala para se preservar.

Nesses dias no estrangeiro, e com um inglês infantil, o velho faz amizade com uma senhora iraniana, com idênticas dificuldades com o idioma. Assim, cada um conversa sozinho, na sua língua materna, e os dois se entendem maravilhosamente bem. Não dominar um código comum é uma oportunidade de confessar em voz alta todos os segredos.

O pai quer levar a filha a um tipo de sacrifício que não faz mais sentido para quem está desenraizado. O silêncio entre os dois ganha ares sufocantes, enquanto ele continua seu monólogo com a velha senhora. Isso dura até ele ver a filha ao telefone com um homem, descobrindo que ela é outra pessoa: alegre, imodesta e oferecida. Eles estão separados para sempre, pois aquela em quem ela se transformou só existe neste idioma que o pai ignora. Num único momento de diálogo, ela revela que sabia da mentira da vida profissional do pai – que não chegara a ser um cientista. Não diz mais nada, não dá oportunidade para ele explicar o passado. O silêncio agora era definitivo entre os dois.

O velho resolve então voltar à China, mas antes procura a mulher iraniana, e narra o sacrifício que fizera, renunciando à sua carreira para preservar a esposa e a filha. Ele diz: "O que dá significado à vida é aquilo que nós sacrificamos" (p.216). Não importa que não o entendam, e sim que pôde verbalizar sua história, a longa e solitária busca pela felicidade: "É preciso três mil anos de prece para deitar a cabeça no travesseiro ao lado de quem se ama" (p.205). Há um descompasso entre o imediatismo da alegria do mundo adotado pela filha e o sem-tempo da cultura profunda dos povos antigos, que pode ser a China ou o Ir㠖 por isso ele e a velha senhora se entendem.

Deixando as narrativas em aberto, ambientando suas histórias no vácuo de dois idiomas, duas culturas e dois modelos sociais, Yuyin Li, nascida em Pequim e naturalizada norte-americana, escreve em inglês as narrativas desse conflito. O idioma usado por ela não é o do esquecimento do outro, mas o da universalização redentora de tempos e lugares errados. Afirma um de seus personagens: "As verdadeiras artes têm a ver com o ato de lembrar" (p.92). Eles estão sempre a caminho dos Estados Unidos, fugindo da padronização comunista, que os reduziu a meras forças produtivas, mas funcionam também para preservar as grandezas de uma outra China.

Há sangue, sonhos, dignidade, promessas quase impossíveis, espírito de renúncia, sofrimento e poesia nas trajetórias desses seres. Sufocados por um regime autoritário, eles só conseguem existir em outro idioma que, por mais diferente ou precário que seja, funciona como pátria ancestral de homens e mulheres desterritorializados e, assim, duplamente excluídos.

Serviço:

Tempo de Boas Preces, de Yuyin Li. Tradução de Fernanda Abreu. Nova Fronteira, 240 pág,. R$ 34,90. Contos.

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