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Savage descreve um animal da floresta literária: o grande escritor sem livro | Divulgação
Savage descreve um animal da floresta literária: o grande escritor sem livro| Foto: Divulgação

Mesmo na literatura há famílias, numa relação de parentesco muitas vezes involuntária. Assim, poderíamos dizer que o norte-americano Sam Savage (nascido em 1940), autor de Cartas de um Escritor Solitário, é descendente direto de John Fante (1909-1983), principalmente pelo tom humorístico de seus textos, mas também por tratar das fixações ególatras de um escritor e por fazer uma reflexão desencantada, e ao mesmo tempo terna, sobre o ser humano.

O principal traço da vida do obscuro e provinciano escritor Andrew Whittaker, narrador do livro, é a mania de confundir o que a sua mente pensa com a realidade. Ele é muito mais ficcionista nos momentos em que se relaciona com as pessoas do que ao tentar a ficção. Herdeiro de imóveis arruinados, Whittaker dirige sozinho uma revista literária irrelevante (chamada Sabonete), foi abandonado pela mulher, odeia a irmã e ignora a mãe doente. Mesquinharia e presunção se alternam nesta figura que se imagina um grande artista perseguido pelo mundo. Esta é uma história tão comum no meio literário que nos identificamos imediatamente com o intelectual falido que vê todos triunfarem enquanto ele segue, num ritmo acelerado, para a obscuridade.

Trata-se de um ressentido, que odeia o mundo porque o mundo não o cultua. Distribui farpas a velhos amigos e a colaboradores de sua revista, colocando-se sempre acima de todos.

Estruturado principalmente a partir de cartas sem datas, o romance de Savage se apresenta como a recolha das correspondências dos últimos quatro meses de vida desse quase romancista – são cartas agressivas, delirantes e inteligentes, que formam uma espécie de espólio literário de um escritor que poderia ter sido e não foi. O centro simbólico do romance é o elogio que ele faz do bicho preguiça, no qual se reconhece física (cabeça pequena num corpo desajeitado) e psicologicamente – pois passa o tempo todo em casa, encenando o papel do misantropo: "então agradeço a deus pelas cortinas" (p.153). Até se especializa em imitar o que seria o grito de dor do bicho preguiça – em inglês, o livro se chama The Cry of the Sloth. Savage está, assim, descrevendo um velho animal da floresta literária: o grande escritor sem livro.

Preso aos negócios paternos e à revista que é quase uma piada, mal vestido, faminto, Whittaker é um perigo. Como não sabe lidar com o mundo, cobra os seus inquilinos por meio de cartas ou bilhetes acusatórios. É esta obsessão pela escrita que o torna tão interessante: se não produz ficção, dedica-se integralmente às cartas, a anúncios e a listas de compras, criando um deslocamento de tom. Ele é emotivo e delirante ao explicar para o funcionário do banco as razões de atrasos de pagamento. É inconveniente ao solicitar favores a escritores importantes, como se tivesse concedendo um privilégio. A sua escrita está sempre fora do lugar, negando convenções.

O humor nasce desse método confessional ou desvairado de escrever cartas formais e também de sua capacidade de mentir para as pessoas (e para si mesmo), assumindo identidades conflitantes. Enquanto bombardeia o mundo, começa a empacotar os seus pertences, para se desfazer deles e de si mesmo. Esse processo de isolamento total, a inatividade e a ficcionalização conspiratória dão a um personagem altamente negativo um profundo sentido humano. Entre os livros que ele pretende produzir, está o Dicionário Internacional da Dor. Mas só consegue escrever um verbete, o do próprio sofrimento, o de "um homem cego em uma casa cega" (p. 205), tal como ele se define. Suas cartas, mesmo as mais engraçadas, são gritos de dor silenciados.

Serviço

Cartas de um Escritor Solitário, de Sam Savage. Tradução de Luis Reys Gil. Planeta, 224 págs, R$ 34,90. Romance.

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