Esqueça tudo que você entendia como romance contemporâneo. Ele sofreu uma violenta atualização com A Visita Cruel do Tempo (Intrínseca, 2012), da norte-americana Jennifer Egan, ganhador, entre outros, do Pulitzer de 2011. É o romance da era do Facebook, embora não apele para recursos gratuitos de linguagem. A questão principal do livro é a passagem do tempo, e a possibilidade de reaproximar antigos companheiros por meio das redes sociais, o que destaca ainda mais a ação devastadora das décadas.
No final do livro, os jovens de um agora futurístico recusam os símbolos da juventude dos anos 70 e 80, que queria ficar estampada nas tatuagens: "Todos os jovens de hoje em dia eram limpos. E quem poderia culpá-los, pensou Alex, depois de terem visto três gerações de tatuagens flácidas penderem de bíceps magros e bundas caídas feito um estofado roído pelas traças?" (p.311). Esta era da limpeza é dominada pelo marketing total, não havendo limites para comprar opiniões com o intuito de lucrar e fazer sucesso. Nela, os novos intelectuais são meros formadores de opinião e se destacam pela ambivalência ética. Nesta idade pós-ética, palavras como "moral", "amigo", "real", "história" etc. se fizeram vazias de sentido, e só podem aparecer entre aspas, indicando a suspensão do humano. Tal comportamento atinge até um ícone empresarial do universo do rock pano de fundo do livro , um homem que outrora descobria grupos cujas músicas vinham sujas de realidade. Depois de ter vendido seu selo para uma grande gravadora, onde trabalhou produzindo lixo musical, o lendário Bennie Salazar cria, por meio de falcatruas de marketing on-line (comprando descaradamente os formadores de opinião) o sucesso de um velho e recluso roqueiro, rendendo-se ao novo modelo.
Com uma capacidade fabuladora incrível, algo raro na aridez literária da contemporaneidade, Jennifer Egan constrói, por meio de capítulos autônomos, um vasto painel dessas mudanças. Apesar da descontinuidade vertiginosa, o livro tem uma coesão incrível, em uma prova de que mesmo a mais fragmentada das obras deve funcionar como um todo.
O que amarra os capítulos são os personagens. É neles, nas suas trajetórias, em como sentem no corpo e na mente a passagem do tempo, que reside a grandeza do romance. Um personagem apenas referido num capítulo aparece em outro como figura central, muitas vezes como narrador, contribuindo para uma compreensão metonímica do universo dos jovens que viveram a ética revolucionária do rock e depois se deixaram destruir ou se venderam. Os capítulos não estão em ordem cronológica, e mesmo dentro deles há avanços trepidantes, mostrando o que acontecerá muito depois. Com isso, ficamos com a sensação amarga de que o presente se esboroa assim que tocado.
Nem mesmo os textos resistem a esta devastação. Em dois momentos, a linguagem se reduz a um código esgarçado. No capítulo 12, "Grandes pausas do rock and roll", a menina Alison conta a sua história por meio de slides para PowerPoint. É neste formato que ela escreve o seu diário íntimo, falando de sua mãe, ex-drogada e ex-funcionária de Bennie, de seu pai, um médico dedicadíssimo, mas principalmente de seu irmão autista, que faz gráficos para acompanhar as pausas musicais de clássicos do rock. O choque entre os sentimentos intensos desta menina e a linguagem dos esquemas dos slides aponta para o fato de o idioma narrativo estar se esvaziando nesta geração.
Já um pouco mais velha do que Alison, filha de uma assessora de imprensa que modificou a imagem de um general responsável por genocídios, a Lulu do capítulo 13 só consegue se comunicar em mensagens abreviadas e por meio de aparelhos, mesmo quando está junto com as pessoas. Tudo só existe se mediado tecnologicamente.
Incorporando os elementos desta era líquida (para usar o conceito de Zygmunt Bauman), A Visita Cruel do Tempo parece dizer, em cada uma das trajetórias tortas, que a corrosão da linguagem produz um mundo de zumbis tecnológicos, e que a única maneira de reconquistar a individualidade é se deixando emocionar.
Serviço:
A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan. Tradução de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. 336 páginas. Romance.
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