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Miguel Sanches Neto

Perfume de mexerica

Era proibido comer na sala de aula. Para isso existia o intervalo, que na nossa época se chamava recreio. Na hora do recreio, poucos acabavam na cantina da escola, ou no pipoqueiro. Levávamos comida de casa. Podia ser o pão caseiro com ovo, envolto em papel de embrulho, sonhos gordurosos preparados por nossas mães, ou pedaços de bolos sem cobertura nem recheio. Mas não havia merenda (outra palavra em desuso) melhor do que as mexericas. Havíamos colhido num dos pés do quintal, e as tínhamos em grandes quantidades. Eram pequenas e cheias de semente, com uma casca lisa que aderia aos gomos. Em cada detalhe, uma provocação aos cinco sentidos.

Mesmo sabendo que não se podia mexer no lanche, que a professora ainda estava explicando um conteúdo qualquer, não resistíamos e descascávamos clandestinamente, sob a carteira, uma das mexericas. Ao fincar a unha do dedão pela primeira vez naquela pele firme, um cheiro cítrico tomava conta de toda a sala e acabava nos denunciando. Todos sentiam a boca salivar, e vinha a repreensão da professora. Prometíamos parar com aquilo, mas aos poucos íamos devorando a fruta. Na hora do intervalo, os amigos nos rodeavam para ganhar aos menos uns gomos.

A mexerica despertava nosso apetite e nos devolvia ao quintal de casa, onde não havia regras, onde podíamos fazer de tudo, viver imaginariamente mil vidas.

Qualquer que seja o conteúdo escolar deve despertar este desejo, provocando nossos sentidos. Porque aprender passa também por nosso sistema sensitivo. Se é necessário, para o conhecimento de alguns conteúdos, um esforço intelectivo, este não serve para muita coisa se não conseguir nos nocautear.

E nada mexe mais com o nosso imaginário do que a leitura, principalmente quando entendemos que um livro é algo colado à vida, e não superior a ela.

Na escola, mas não só aí, o texto sofre uma elevação, afastando-se de quem o lê. Este distanciamento é apenas aumentado por aulas que o tratam como história da literatura ou corrente crítica. Fora da educação infantil, textos geralmente são roupas alheias, exageradamente formais, que quase nunca servem ao leitor.

Sentindo isso, um professor irlandês nada ortodoxo, que depois de aposentado viria a se tornar um grande memorialista, Frank McCourt, descobriu que devia ferir profundamente seus alunos de uma escola secundária em Nova Yorque. Ele observara que apenas duas coisas chamavam a atenção de adolescentes: sexo e comida.

Tendo que transformar estes jovens em leitores, mas não querendo confusão com a família, ele fica com o segundo campo de interesse geral. Troca a leitura dos textos clássicos da literatura de língua inglesa, pelas receitas de culinária. Isto mesmo, os seus alunos começaram a ler livros de receitas.

Tudo aconteceu de forma natural. Um aluno oferece algo para ele. Ele diz que é proibido comer na aula. Tenta ser um professor que respeita as regras, mas percebe que todos têm no lanche o grande momento da escola. E como está em um lugar onde pessoas de várias etnias estudam, o cardápio da sala é bem variado.

A primeira coisa que ele faz é instituir uma aula no jardim – uma aula-piquenique a que os alunos comparecem com os pratos mais típicos de suas famílias. Todos partilham esses alimentos e conversam sobre os seus nomes, sua maneira de preparo. McCourt chama isso de aula de vocabulário – e não deixa de ser.

O próximo passo do professor é pedir para que os alunos tragam livros de receitas de casa. Embora as famílias não possuam livros de literatura, a maioria tem livros ou cadernos de receita, pois este é um texto útil. Com esses livros familiares, o professor pede que cada aluno leia para a turma, em voz alta, a sua receita predileta. Mas ele não aceita algo passivo, tem que ser uma leitura em que a pessoa visualize o prato que está sendo descrito, que sinta o seu cheiro. E assim a inocente receita ganha um status literário, tal como diz um aluno:

"Eu sei por que o senhor quer que a gente leia essas receitas assim em voz alta. Porque elas parecem poemas na página e tem umas delas que soam igual a um poema. Quer dizer, são até melhores do que poemas porque a gente pode sentir o gosto".

Esta e outras histórias estão narradas em Ei, professor (Intrínseca, 2007), de McCourt. Mesmo recebendo críticas dos demais professores, dos pais e de alguns alunos, que vêem neste método uma matação de aula, o professor persiste e faz com que as receitas passem a ser cantadas na sala de aula.

A grande lição que McCourt dá a seus alunos é a de que um texto não pode somente ser lido. Se apenas o lermos, podemos até tirar alguma informação dele, mas ele não promoverá nenhuma alegria em nós. Por meio dessas receitas, os alunos compreendem que toda boa leitura provoca sensações.

Um dos equívocos da terminologia usada na formação de leitores é a idéia do hábito. Leitura não pode ser um hábito, tal como se propõe, uma vez que hábito é algo cego, uma repetição inconsciente, um fazer-se independente do querer do sujeito e, portanto, alienante.

O bom professor de língua, mais do que passar conteúdos, desperta um apetite pelo texto. As suas falas sobre uma obra, sempre com entusiasmo, num sinal de prazer conquistado e compartilhado, comunicam promessas sensoriais.

Como a da mexerica sendo descascada sob a carteira.

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