O escritor catalão Enrique Vila-Matas: um giro pela Irlanda das letras| Foto: Divulgação

A obsessão da modernidade pelo novo gera o anúncio constante de mortes: a morte do autor, do romance, da crítica e do livro... Esta é a última moda mortuária. Escritor que tem como tema (e como público) os próprios escritores, uma espécie de Jorge Luis Borges repaginado, o catalão Enrique Vila-Matas transformou a morte da literatura no cenário de seu romance Dublinesca.

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Sim, em cenário.

O romance se passa principalmente nas referências literárias de um requintando e falido editor espanhol, Samuel Riba, que não domina o inglês (o que por si só é um atestado de óbito intelectual – ai de mim!) e que se tornou comercialmente obsoleto por primar por um catálogo de qualidade. Ele fica sem a editora, está a ponto de perder a mulher e corre o risco de voltar a beber. Subitamente, torna-se um inativo, que dedica seu tempo à internet e a promover o luto da era de Gutenberg – a informática teria mudado não apenas o meio de fruir o texto mas a essência do literário, em consonância com o embrutecimento geral da humanidade.

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Como já não recebe convites para eventos culturais, o que ele esconde de seus pais já bem velhos mas ainda atentos, inventa uma viagem a Dublin para reviver a sua importância. Não há uma razão prática para esta viagem, mas Riba logo doa um sentido simbólico a ela. Vai participar do bloomsday, esse halloween dos admiradores de Ulysses, de James Joyce, obra que para o narrador marca o fim de uma época: "E não sei se vocês se deram conta de que bloomsday soa parecido com doomsday, dia do Juízo Final. E não é outra coisa o longo dia em que se passa o Ulysses" (p.230). Elegendo Dublin como centro do campo de poder estético do século 20, Riba convoca alguns fiéis amigos (ex-editados seus) e planeja transformar a viagem no enterro da própria literatura. Mais, será um grande funeral de tudo, da sua própria vida, principalmente, embora busque reinventá-la por meio de um salto inglês – a mudança para um lugar de domínio desta língua e de seus valores comerciais e tecnológicos.

As cores paródicas que encontra na Irlanda, turistas e mais turistas travestidos de personagens de Ulysses, dão um tom falso para o momento que ele queria solene. Paralelo a esta decepção, ele acaba convivendo com as forças ocultas de sua própria trajetória, voltando ao álcool e se tornando definitivamente um solitário, o que fornece à viagem um sentido identitário. Mas o réquiem à literatura só se efetiva quando Riba participa, comovido, da morte de um jovem da região, que se fantasiara de Samuel Beckett, outro dublinense ilustre. É neste velório real que ele conhece esta experiência terminal.

O romance todo é uma deliciosa viagem pelas citações de vários autores, que comparecem com frases e opiniões. O narrador se vê como um catálogo, o catálogo de sua editora, sem distinguir o que é vida do que é literatura ("Minha biografia é o meu catálogo", p. 34). Usando o Google a todo momento nesta sua vida pós-morte, Riba tenta controlar "a amargura do editor", uma doença comum no meio, e ainda acreditar na literatura como uma manifestação epifânica. Na sua capacidade de se condoer com o outro (no caso, com o desconhecido que se vestia como o jovem Beckett) é que estaria a última esperança para a galáxia de Gutenberg, convertida ou em espetáculo turístico ou em matéria empoeirada de museu. Mesmo neste momento apocalíptico, Vila-Matas tenta fazer da literatura uma avenida das intensidades humanas, propondo o "reaparecimento do autor" (p.314).

Serviço

Dublinesca, de Enrique Vila-Matas. Tradução de José Rubens Siqueira. Cosac Naify, 320 págs. Romance. Preço médio: R$ 49,50.

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