A ilha de Canna, na Escócia, anda em polvorosa. Há algumas semanas, os moradores ficaram chocados com algo absolutamente inesperado: um crime, o primeiro em 50 anos. O anterior, jamais solucionado, dizia respeito ao furto da placa de madeira da igreja local. Agora, um gaiato entrou na única loja da região durante a noite e surrupiou doces, pilhas e chapéus artesanais de lã. Como o estabelecimento fica aberto em tempo integral, mas não necessariamente com atendente (é que o povo pega as coisas na confiança, anota em uma caderneta e paga depois), o caso se converteu em um mistério chocante.

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Um mistério, aliás, com possíveis repercussões psicossociais, uma vez que a comunidade possui apenas 20 habitantes, vivendo em uma área de pouco mais de 10 quilômetros quadrados cercada pelas águas brumosas do Atlântico Norte.

A menos que a pessoa que levou os produtos tenha se esquecido de anotar a compra na caderneta – hipótese remota que salvaria a sutil trama civilizatória da antiga ilha viking de Canna –, o caso há de ter implicações. Para começo de conversa, o fim da velha confiança e o início de uma fase de acusações secretas. E um cadeado na porta da loja, um olhar para trás antes de entrar em casa, uma espiadela final na linha do mar em uma inconfessável busca pelo pirata. O fim, enfim, de uma paz histórica. Borrão no contrato social.

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Entre nós, a violência foi de tal forma internalizada que, muitas vezes, pensamos nela como um dado definitivo

Do lado de cá do Atlântico, a história soa como uma nota curiosa, cheia de graça ingênua. Aqui, o furto de um punhado de doces e de algumas toucas de lã não causaria tanta celeuma, a não ser que arrematado por uma generosa saraivada de balas. Talvez, mundo besta, fosse até comemorado (“ainda bem que levaram só a paçoca rolha!”) ou resignadamente colocado na conta das “outras despesas”. Ossos da existência.

Mais do que tudo, o que me toca no crime escocês é a percepção dos limites de nossa própria liberdade. Entre nós, a violência foi de tal forma internalizada que, muitas vezes, pensamos nela como um dado definitivo, um componente de nossa própria civilização. O que provoca um empobrecimento brutal da existência. Para os moradores de Canna, o furto constituiu uma espécie chocante de “pecado original”; em Curitiba, demônios de todos os crimes voejam, desimpedidos, pelos 76 bairros. Só rezando, mesmo.

PS.: Há alguns dias, conversando com uma estudante vinda do Japão, escutei um comentário interessante. Disse ela que, em seu país, os alarmes servem para alertar sobre possíveis terremotos. “Pois aqui é a mesma coisa”, brinquei, sem ser compreendido. Brincadeira sem graça.

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