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Rodrigo Wolff Apolloni

O navio negreiro

Havia muito tempo eu não lia uma notícia tão importante. Aquela sobre a descoberta, por arqueólogos americanos e sul-africanos, do navio negreiro português São José – Paquete de África, afundado em 1794 no Cabo da Boa Esperança.

O navio transportava cerca de quinhentas pessoas escravizadas em Moçambique e destinadas às lavouras de cana do Maranhão. De acordo com documentos encontrados pelos pesquisadores, o capitão tentava fugir de uma tempestade quando se chocou contra rochas próximo da Cidade do Cabo.

Muitas das nossas desventuras são filhas diretas da economia da escravidão

Dos escravos, 212 foram resgatados. É possível, inclusive, que muitos deles tenham vindo mais tarde ao Brasil. Na época, a despeito das primeiras leis europeias antiescravidão, os traficantes lusófonos ainda lucravam fábulas com os navios negreiros. Por “lusófonos” devemos entender os portugueses e os agentes econômicos coloniais que construíram a ponte transatlântica que transportou cinco milhões e oitocentos mil cativos para as lavouras brasileiras. Os mesmos donos de feitorias que, quando da independência do Brasil, ensaiaram incorporar os territórios portugueses da África Ocidental ao novo país. Os mesmos, enfim, que condenaram a proposta antiescravista de José Bonifácio para a Constituinte de 1823 ao esquecimento.

O navio descoberto nas águas do Cabo assombra pelos lastros de ferro resgatados do fundo do mar, usados para equilibrar a embarcação diante das variações de peso provocadas pelas mortes no porão. Assombra também por sua raridade: o São José é o único navio negreiro naufragado com sua carga humana encontrado pelos arqueólogos. Os demais achados (caso do Camargo, afundado em Angra dos Reis em 1862) dizem respeito a embarcações aposentadas ou, então, destruídas durante o ciclo britânico de caça aos traficantes de escravos iniciado em 1807.

Se pensarmos que a diáspora negra na América só ocorreu graças a 35 mil expedições marítimas (os dados são do Trans-Atlantic Slave Trade Database, projeto de várias universidades americanas), podemos imaginar o grau de eficiência do transporte. Podemos imaginar, inclusive, a especialização e a frieza com que as tripulações lidavam com as muitas insurgências em cada viagem.

Ao ser revelado, o naufrágio africano permite, no mínimo, uma reflexão sobre a relação do Brasil atual com o Brasil escravocrata. Muitas das nossas desventuras são filhas diretas da economia da escravidão. Constituem uma espécie de “carma civilizatório”, histórico e coletivo, expresso na violência, na miséria, na corrupção, na ignorância, no mandonismo e na bandalheira de todos os dias. Um carma que, lutemos todos os dias por isso, não leve outros quatrocentos anos para ser purgado.

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